A Guerra | EP36 | MPLA: a Revolta Activa OS TRAIDORES DERAM VIDA AO MPLA
O presente trabalho tem como objecto de estudo o surgimento do grupo dissidente da Revolta Activa ocorrido no interior do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), com o anúncio feito a 11 de Maio de 1974. O horizonte temporal desde estudo vai de 1969 a 1976, compreendendo um longo período de crise no movimento de libertação nacional angolano melhor estruturado e que sofreu, da parte das autoridades coloniais, um combate mais violento. A intensificação da contra-ofensiva militar a partir de 1968 fez perigar a existência deste movimento, devido ao conjunto de problemas internos, que despoletaram as suas fragilidades e vulnerabilidades, encontrando-se aí parte das razões profundas que estiveram na origem deste longo período marcado por uma forte crise política, militar e social no interior do MPLA. Deste modo, o ano de 1969 é o marco inicial desta fase de declínio e é assinalado com uma revolta da autoria de guerrilheiros de base, de chefias de escalão intermédio e de população descontente que ocorreu na Sub-região da Frente Leste. Já o ano de 1976 marca o fim da existência da Revolta Activa, que termina devido à prisão de grande parte dos seus membros, após a independência de Angola, embora a sua dissolução tenha começado a esboçar-se a partir do primeiro trimestre de 1975, mais precisamente depois da assinatura dos Acordos de Alvor que ocorreram a 15 de Janeiro desse ano. O surgimento da Revolta Activa insere-se pois, nesse contexto de profunda crise interna do MPLA. Assim sendo, o objectivo principal deste estudo é conhecer como surgiu, quem foram os intelectuais que protagonizaram tal dissidência e qual o seu percurso histórico (uma vez que a legitimidade da sua acção durante a luta armada foi posta em causa), numa tentativa de perceber quais as razões do surgimento da Revolta numa fase de mudança da conjuntura política. A metodologia adoptada para este estudo baseou-se na pesquisa de fontes e bibliografia referente aos factos históricos, que permitissem uma visão diacrónica dos acontecimentos, com especial ênfase no papel desenvolvido por estes intelectuais, que estiveram na origem da Revolta Activa. Tendo em conta este propósito, as pesquisas tiveram como preocupação a recolha de factos que nos permitissem conhecer as acções realizadas por estes intelectuais no quadro do movimento nacionalista angolano. Estas pesquisas conduziram-nos ao 1 2 CVAAR (Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados) e ao CEA (Centro de Estudos Angolanos), enquanto realizações bem sucedidas que tiveram impacto na luta de libertação nacional e que são exemplos de boa organização, de dinamismo e de empenho, numa fase inicial da existência do MPLA, para além de terem sido instituições onde se pode perceber a acção e a preocupação de participação da intelectualidade angolana durante a fase de luta armada. Dentro da pesquisa das fontes e da bibliografia, o Manifesto dos Dezanove, também conhecido como Apelo dos Quadros e Militantes do MPLA, ocupou o lugar cimeiro, uma vez que representa a face visível e fundadora deste grupo. Contudo, outros documentos, fontes e bibliografia foram tidos em linha de conta, já que está em causa um acontecimento de capital importância e que encerra uma grande complexidade de análise. O primeiro foco de análise prende-se com a questão política: esta é uma dissidência formada por intelectuais que procuram reagir de forma concertada e estruturada contra a situação de crise prevalecente no interior do MPLA, pondo em causa, de forma frontal e directa, a liderança do presidente do movimento, Agostinho Neto. Uma acção que decorre já em plena mudança de conjuntura política, com a queda do regime de Salazar e Caetano, acontecimentos que não impediram que a referida dissidência conhecesse a luz do dia. Esta clara posição de força levanta a questão da legitimação política que nos leva a interrogar quem são esses intelectuais. O segundo ponto de análise debruça-se sobre a repercussão política que esta dissidência provoca no interior do MPLA e coloca o problema de índole racial e social que fragmenta e aumenta o fosso das clivagens entre os intelectuais urbanos e a nova nata de intelectuais que se forma na guerrilha, os designados por “os verdadeiros filhos de Angola”, pondo em causa mais uma vez a questão da identidade nacional. Quem são os angolanos? O que se entende por angolanos legítimos e não legítimos? O que é afinal o MPLA? Uma frente? São problemas que todas as colónias enfrentaram, de um modo geral, e o movimento nacionalista angolano, em particular, no seu longo caminho de construção da identidade nacional. Constituindo assim estas duas questões – por um lado, a legitimação política deste grupo de intelectuais, enquanto elite pensante, fazendo parte desta frente que era o MPLA. E, por outro, o questionamento sobre a legitimação da sua acção que é posta em 2 3 causa pela condição social e racial, condições que, por se encontrarem entrelaçadas, funcionaram como forças de bloqueio no avanço de uma discussão profunda dos graves problemas que dificultavam o desenvolvimento do MPLA. Sobre o tema em questão ainda não existe um estudo monográfico, já que este grupo dissidente é referido em abundância apenas em trabalhos sobre a História do MPLA e sobre o movimento nacionalista angolano. Dentre estes destaca-se pela sua importância e profundidade a obra levada a cabo pelo historiador Jean-Michel Mabeko Tali1, intitulada Dissidências e Poder de Estado. O MPLA perante si próprio (1962-1977): Ensaio de História Política, 2001. Estes dois volumes reúnem no seu todo, uma abordagem histórica dos principais acontecimentos da história contemporânea de Angola, tendo como objecto de estudo as crises políticas no seio do MPLA de 1962 a 1977, tais como: 1963-64 (Viriato da Cruz); 1969-1974, a Contestação na Frente Leste e a crise designada por Frente Leste (Daniel Chipenda); a Revolta Activa anunciada a 11 de Maio de 1974 (Brazzaville-Congo) e, por fim, o Golpe de Estado de 27 de Maio de 1977, que ocorre já depois da independência de Angola. O autor procura através desta construção metodológica encontrar respostas às crises e cisões vividas pelo MPLA. Defendendo e concluindo que é na complexidade da heterogeneidade da sociedade angolana, que gerou sempre profundas clivagens e nas persistências da gestão organizativa e política centralizadora deste movimento, que reside o “equilíbrio precário” e a eclosão das sucessivas crises no seu seio. É um trabalho bem documentado, que conta também com a experiência pessoal do autor que viveu parte da sua vida durante o processo de luta armada, numa das bases da retaguarda do MPLA, em Dolisie, no Congo Brazzaville. A história recente de Angola, assim como a história do colonialismo português é rica em testemunhos e obras de carácter memorialistas e foi dentro desta multiplicidade de obras que também foram seleccionadas algumas que se revelaram úteis para este trabalho. 1 Jean-Michel Mabeko Tali, de nacionalidade congolesa (Congo-Brazzaville), Bacharel de Letras em Brazzaville, leccionou em Angola (Luanda e Lubango) em várias instituições escolares do ensino secundário, de 1976 a 1983. Seguiu depois para França onde obteve os seguintes títulos académicos: Mestrado em Estudos Africanos no Instituto de História da Universidade Bordeaux III, Pós-Graduação e Doutoramento em História Política na Universidade Paris VII. 3 4 Deste modo, a obra memorialista de Sócrates Dáskalos intitulada, Um Testemunho para a História de Angola. Do Huambo ao Huambo, de 2000, assim como o prefácio escrito pelo Professor Adelino Torres, constituem outro contributo importante para o presente trabalho, na medida em que se trata de um testemunho de uma franja da sociedade angolana: a comunidade branca, gerações nascidas ou naturalizadas angolanas, ou estrangeiros vindos através da colonização portuguesa, como é o caso dos pais deste autor. Este trabalho insere-se pois numa das problemáticas fracturantes do movimento nacionalista angolano presente também nesta dissidência. Nesta senda também se inclui o testemunho de Adolfo Maria inserido na obra intitulada Angola no Percurso de um Nacionalista. Conversas com Adolfo Maria, 2006, da autoria do historiador Fernando Tavares Pimenta. Trata-se do relato, na primeira pessoa, de um nacionalista militante e activo, que fornece inúmeros factos de reflexão e de pistas de trabalho. Também os contributos de antigos militantes e fundadores do MPLA, como o médico Edmundo Rocha, que se tem dedicado nos últimos anos à recolha e análise dos principais momentos fundadores do movimento de libertação, constituem uma fonte privilegiada de estudo, sobretudo da trajectória política dos intelectuais no movimento nacionalista angolano. Nas suas obras encontram-se testemunhos importantes para o estudo destas questões que pontuaram a vida do movimento de libertação nacional e do MPLA em particular. Por fim, dentro dos contributos mais relevantes, duas obras merecem destaque neste estudo: o romance do escritor angolano Artur Pestana, intitulado Mayombe (1980) e uma outra editada mais recentemente de um dos comandantes mais antigos do MPLA, Paulo Julião (Dino Matrosse). A primeira obra, cujo cenário é a 2ª Região Político Militar que se estendia desde Cabinda, passando pelas bases em território congolês (Congo Brazzaville), faculta-nos uma radiografia sociológica da realidade da guerrilha. A importância da segunda obra reside no facto de possibilitar o conhecimento da dinâmica da guerrilha na Frente Leste, desde a sua criação até 1971, data em que o autor esteve à frente da condução da luta armada naquela região. Trata-se da visão de um operacional, que nos permite entrever o entusiasmo e as dificuldades que tiveram ser vencidas assim como conhecer a origem dos conflitos e das crises que se viveram naquela frente militar. 4 5 Outros documentos coevos ou fontes primárias puderam ser encontradas na Torre do Tombo, no arquivo da PIDE/DGS, onde foi possível reunir um conjunto importante de dados sobre os elementos que integraram o grupo da Revolta Activa, dando assim a possibilidade de se fazer o cruzamento de dados sempre que a coerência dos factos a isso obrigava. O acervo de Mário Pinto de Andrade, disponibilizado on-line muito recentemente pela Fundação Mário Soares, surge como um suporte muito importante no estudo do surgimento desta dissidência. Relativamente ao dossier Revolta Activa, este consta de 35 entradas que vão desde a fase preparatória, concepção dos documentos fundadores, organização e plano de acção imediata, passando pelos momentos mais importantes vividos na primeira fase no exterior. Incluindo, deste modo, os principais documentos produzidos na fase preparatória do congresso de Lusaka e sobre a realização do mesmo, bem como sobre a reunião de Brazzaville, da qual resultou o acordo tripartido obtido sob a mediação dos países africanos limítrofes. A Fundação 25 de Abril também foi importante para os testemunhos sobre o Movimento das Forças Armadas (MFA). Destacamos os jornais, sobretudo aqueles que foram publicados em Luanda, entre 1974 e 1975, pela informação que dão do ambiente político, social e económico desta última fase do colonialismo português em Angola; temos ainda que mencionar os documentários mais recentes sobre a guerra em Angola, dirigidos por Joaquim Furtado (RTP1), que nos dão a imagem fotográfica dos cenários reais em que tudo isto se passou. O recurso aos testemunhos orais constituiu outro pólo de pesquisa. Uma empreitada nem sempre fácil de realizar, devido à reserva manifestada por alguns, mas contrastando com outros que facilmente se dispuseram de forma cordial e prestativa em dar o seu contributo para compreensão dos fenómenos que encerram este facto histórico. Este trabalho encontra-se dividido em 6 capítulos, para além da introdução e da conclusão, onde se procura dar conta do que foi esta dissidência, tendo em conta as causas e as consequências no espaço e no tempo em que surgiu, o papel dos intelectuais angolanos nesse processo, bem como realçar o seu contributo histórico no quadro da historiografia angolana. São eles: Capítulo I: Aborda a questão relativa à origem histórica, social e das primeiras referências políticas dos intelectuais que protagonizaram a dissidência da Revolta 5 6 Activa, bem como as primeiras realizações que antecedem o início da luta armada, em que participaram alguns dos mais destacados membros que deram origem a esta dissidência. Capítulo II: Compreende os anos de 1969 a 1971 e trata da contextualização dos acontecimentos que caracterizaram a crise vivida pelo MPLA entre 1969 e 1974. Neste capítulo centramo-nos na conjuntura política interna que começa por enumerar os primeiros sintomas de um processo de degradação, de alguns actos espontâneos de crítica aos chefes que se estendem depois à direcção e ao próprio líder do movimento. Uma abordagem que implica também o conhecimento da conjuntura internacional, sem a qual ficaria incompleta a compreensão da profunda crise que o MPLA atravessou nesse período. Capítulo III: Refere-se aos acontecimentos de 1972 e 1973, um período em que a persistência dos conflitos internos se foi cristalizando, dando origem ao surgimento de tendências organizadas no interior do movimento. São desse tempo o primeiro Manifesto com críticas de carácter racista e à direcção do movimento, proveniente da 1ª Região da Frente Norte, motivado pelas condições de grandes dificuldades em que essa região vivia, dada a falta de abastecimentos provocada pelo cerco das forças coloniais e pela falta de colaboração entre movimentos nacionalistas, que obstavam à circulação das forças guerrilheiras do MPLA. Conta-se ainda o surgimento da Revolta do Leste, comandada por Daniel Chipenda, que assume a liderança das tropas em rebelião e das populações descontentes oriundas da Sub-região Sul da Frente Leste, uma tendência de cariz tribal. Não obstante, este foi também um período marcado por um tempo de esperança com a chegada de novos quadros vindos do exterior, que para além de terem ensaiado algumas acções isoladas tendentes a melhorar o panorama existente, propuseram à direcção do MPLA a realização do Movimento de Reajustamento Nacional. Este capítulo analisa pois, o papel desses quadros, com especial destaque para a figura de Gentil Viana, e o desenrolar deste amplo movimento de debates nas frentes Norte e Leste, bem como o seu desfecho final que resultou não na revitalização, como era esperado, mas sim numa cisão do Movimento, com o surgimento de tendências organizadas e em rota de colisão com a direcção do MPLA. Capítulo IV: Aborda especificamente os acontecimentos políticos que ocorreram no ano de 1974 no interior do MPLA, isto é, o surgimento de mais uma dissidência desta 6 7 feita protagonizada por intelectuais, denominada por Revolta Activa, surgida do fracasso do Movimento de Reajustamento Nacional, que não operou as mudanças necessárias ao fim da desagregação que o movimento vivia e deixou defraudados os intelectuais que se tinham batido pela discussão ampla dos problemas que afectavam o MPLA. Apresenta o desenvolvimento das acções realizadas por esta tendência política, durante a fase da sua estadia em Brazzaville, que ocorre já num contexto histórico diferente, trazido com o golpe de estado de 25 de Abril de 1974, em Portugal, que ditou a queda do regime fascista de Salazar e Caetano e que condicionou todo o desenvolvimento das acções e objectivos deste Grupo. Uma primeira fase que termina com o Congresso de Lusaka e a Reunião de Brazzaville, realizados sob a mediação de alguns países africanos. Capítulo V: Analisa a segunda e derradeira fase da existência deste Grupo, as dificuldades encontradas no interior de Angola para o desenvolvimento da sua acção política, por um lado a realidade nova trazida com a expectativa da independência, o clima conturbado devido à existência de três movimentos de libertação nacional em conflito, o clima de agitação política, social e económica e, por outro lado, a hostilidade com que o Grupo se depara, fruto de uma propaganda contra o surgimento desta nova tendência política. Este capítulo termina com a prisão de parte dos seus dirigentes em 1976. Capítulo VI: O último capítulo aborda as manifestações conflituais que se evidenciaram com o surgimento desta tendência política encabeçada por intelectuais no interior do MPLA. A pertinência deste capítulo decorre, por um lado, do facto destas manifestações terem estado presentes desde a formação e o desenvolvimento da acção desta tendência. Deste modo, a Revolta Activa surge como reacção das persistências dos conflitos internos verificados no interior do MPLA que o ameaçavam de fragmentação, daí a sua revolta contra o poder centralizador da liderança, e reclamação de uma gestão mais democrática. Mas, por outro lado, foram os argumentos baseados nessas manifestações conflituais que ditaram o seu isolamento e o seu fim como tendência organizada. Em anexo são apresentadas as biografias das figuras principais que deram origem a esta dissidência e que aparecem incluídas nos órgãos que constituíram na fase inicial este grupo dissidente, bem como daqueles que se destacaram no decorrer deste 7 8 processo histórico, como é o caso de Joaquim Pinto de Andrade. 8