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A Guerra | EP35 |O imperativo de consciência em Inhaminga


Antecedentes remotos Introdução Portugal foi o Estado da Europa, detentor de colónias, que mais tarde procedeu à descolonização. Essa demora em acompanhar o movimento que se começou a impor logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial deveu-se a vários factores: uns de natureza meramente política, outros de natureza económica e outros ainda de carácter histórico. Politicamente o facto de o Estado Novo ser uma ditadura, que colheu, no plano internacional, o apoio tanto da Grã-Bretanha como dos Estados Unidos da América na fase final do conflito e na que se lhe seguiu até à criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), contribuiu para a definição de uma postura que pretendeu envolver a manutenção das colónias na luta anticomunista a que as grandes potências ocidentais se entregaram2. Economicamente subsistiu, desde o século XIX, a concepção liberal de que, perdido o Brasil, os territórios africanos seriam o sustentáculo da existência autónoma de Portugal3, tese que foi reavivada antes e durante a guerra colonial com os sucessivos Planos de Fomento, traduzidos no texto da Constituição pelo desejo de esbater por completo as barreiras alfandegárias e unificar a moeda4. No plano histórico, o Governo do Estado Novo, naturalmente ultra nacionalista, soube explorar, ao longo do tempo, certos eventos e certas lembranças para recordar que Portugal havia sido o grande pioneiro dos Descobrimentos e que, por via disso, se tinha alcandorado, no século XV, a grande potência europeia. Embora sendo um país de elevada percentagem de analfabetos, do final da década de 20 ao começo dos anos 60, a instrução escolar primária e secundária foi reforçando os sentimentos nacionalistas de modo a que várias gerações de jovens reviram o passado pátrio como a imposição de trazer à «civilização» os povos estranhos com quem se havia contactado. 1 Demorou a escrever quinhentas e vinte horas, segundo a estatística que o prórprio computador executa automaticamente… e eu acredito nela! 2 Veja-se, por exemplo, António Costa Pinto, O Fim do Império Português, Lisboa, Livros Horizonte, 2001, pp. 45-46. 3 Cf. de Oliveira Martins, A Introdução à 8.ª edição de Portugal Contemporâneo, Lisboa, Guimarães & C.ª Editores, 1976, especialmente a p. 16. 3 Contraditoriamente, até ao começo das hostilidades em Angola, era mais fácil conseguir emigrar para o estrangeiro — primeiramente, e no rumo da tradição, para os países da América do Sul e Central — do que para os territórios ultramarinos5. Em suma, pode dizer-se que se algumas elites estavam atentas às mudanças que a vitória dos Aliados, em 1945, iria desbloquear, o certo é que a grande massa anónima da população portuguesa vivia embalada numa propaganda que lhe garantia o Império como um bem irremediavelmente português. A guerra foi uma surpresa. a) A consagração colonial Com o final da Grande Guerra, em Novembro de 1918, pode dizer-se que Portugal ficou consagrado como uma potência colonial, já que, na Conferência da Paz, lhe foi reconhecida a integridade dos seus territórios de além-mar6. A onda reivindicativa das independências no continente africano e no Oriente ainda quedava longe de se formar. Tão grande foi a certeza de que a Europa e as tradicionais potências detentoras de territórios coloniais em África estavam para ficar naquele continente que a Ditadura, acompanhando as tendências francesas e britânicas, optou por legislar sobre as tradicionais províncias ultramarinas em termos imperiais, cortando com a herança liberal recebida da Monarquia e continuada na 1.ª República7. Assim, fez aprovar, em 8 de Julho de 1930, o chamado Acto Colonial que, ainda antes da publicação da Constituição Política de 1933, alterou de modo significativo a Constituição de 1911 e a legislação republicana de 19208. O artigo 2.º explicitava o esteio ao qual se amparava toda a nova concepção colonizadora: «É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de 4 Cf. Manuel Jacinto Nunes, «A Dimensão Sócio-económica: Passado recente , situação actual e futuro relacionamento com países lusófonos» in Estudos sobre as campanhas de África (1961-1974), Lisboa, Instituto de Altos Estudos Militares, 2000, pp. 36-39. 5 Sobre estes conceitos pode consultar-se Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África. Séculos XV – XX, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2004, pp. 302-310, mas especialmente pp. 304-309. A autora deixa bem claro que os verdadeiros contactos coloniais, com espírito colonizador (segundo os princípios da ocupação efectiva) só se começaram a fazer sentir a partir dos últimos anos do século XIX, expressando-se pela obragação a trabalhar segundo os ditâmes do colonizador (p. 312). 6 Cf. José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência da Paz. Paris, 1919, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, p. 82. 7 Cf. A. H. de Oliveira Marques, «Introdução» in Nova História da Expansão Portuguesa. O Império Africano 1890 – 1930, (coord. A. H. de Oliveira Marques), Vol. XI, Lisboa, Editorial Estampa, 2001, pp. 22-25. 4 civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente»9. O Império, na acepção de território subalterno dominado e governado a partir de Lisboa, passava a ter existência. E os alvores que pronunciavam a eclosão da 2.ª Guerra Mundial não punham em causa a detenção dos territórios de além-mar, porque a potência geradora da instabilidade no Velho Continente — a Alemanha — não se interessava por uma expansão ao sul do deserto do Sara. Entretanto, o Governo português, ainda que reconhecendo um estatuto dependente às populações indígenas das colónias, como consequência da prática de culturas distantes das europeias, nem por isso desenvolveu um esforço coerente e continuado para lhes modificar tradições ou levá-las à aprendizagem da língua portuguesa. Às missões foi dada a possibilidade de exercerem a sua actividade religiosa e difusora de cultura e de profissões úteis aos povos e à economia local; nas maiores cidades existiam liceus e escolas comerciais e industriais que serviam essencialmente a minoria branca e uma quase inexistente pequena burguesia negra ou mista oriunda de actividades ligadas ao funcionalismo público. Contudo, para afirmação de um domínio completo sobre os vastos territórios africanos, que haviam resultado da Conferência de Berlim10, primeiro, sob um estatuto imperial e, depois, na perspectiva de uma nação multirracial, o Estado Novo não se eximiu, ao longo dos tempos, a uma série de significativos eventos que dessem a conhecer internamente e ao mundo o seu efectivo controlo sobre povos exóticos e díspares. A primeira manifestação levada a efeito, ocorreu no Porto, em 1934, no Estádio do Lima, onde se exaltaram as qualidades do «soldado indígena» com a apresentação dos landins da Companhia Indígena de Moçambique. Ainda nesse ano e na mesma cidade, teve lugar uma exposição colonial. Em 1935, uma exposição de menores dimensões e reflexos veio recordar a tomada de Chaimite por Mouzinho de 8 Cf. Valentim Alexandre, «Acto Colonial» in Dicionário de História de Portugal, supl., vol. VII (coords. António Barreto e Maria Filomena Mónica), Porto, Figueirinhas, 1999, pp. 43-45. 9 Citado por Valentim Alexandre in op. cit., p. 43. 10 Como refere Adriano Moreira («Enquadramento político-estratégico das campanhas de África» in Estudos sobre as campanhas de África (1961-1974), Lisboa, Instituto de Altos Estudos Militares, 2000, p. 25) a presença tradicional portuguesa em África foi, durante séculos, marcadamente costeira, sendo raras as penetrações e fixações no interior. O princípio da ocupação efectiva é que determinou a delimitação de fronteiras e a presença mais notória de comerciantes e agentes da autoridade no interland. 5 Albuquerque; em 1937, ocorreu uma outra comemorativa da «História da Ocupação»11; três anos depois, teve lugar em Lisboa a chamada «Exposição do Mundo Português» que constituiu o apogeu deste apelo constante para a missão colonial, na tentativa de ligar um passado longínquo a um presente que se pretendia herdeiro das tradições de antanho12. Já no ano de 1946, quando começavam a raiar no horizonte político internacional os primeiros sintomas de contestação do colonialismo, realizou-se a exposição comemorativa do V Centenário do Descobrimento da Guiné. A Exposição de Arte Sacra Missionária, em 1951, a comemoração do centenário de Mouzinho de Albuquerque, quatro anos depois, e, em 1960, as do Centenário da Morte do Infante D. Henrique foram manifestações que se inscreveram na nova perspectiva do anticolonialismo, agora já não para exaltar o Império, mas para marcar a ideia de uma Nação una e indivisível, mesmo que espalhada por diferentes territórios e distantes latitudes. O Império desmoronava-se por vontade política de quem o tinha exaltado para dar lugar a uma ficção nacional só existente na determinação dos próceres do Estado Novo, no texto da Constituição Política reformada no pós-guerra e na imaginação ignorante das massas populares conduzidas pelo aparelho de propaganda condicionador da visão clara da realidade. b) As primeiras contestações A consciência de uma ideologia que se opõe à prática do colonialismo vem do começo do século XX e assumiu a designação geral de pan-africanismo. Só entre 1919 e 1927 é que se realizaram congressos internacionais pan-africanistas que vagamente levantaram o problema da autonomia dos povos. O que se discutia com maior interesse eram as condições de vida das populações sujeitas ao domínio colonial. Contudo, estes congressos foram o embrião de onde começaram a surgir as motivações autonomistas. A segunda sessão do III Congresso Pan-africanista ocorreu em Lisboa, no ano de 1923. Teve a assistência de uma representação da Liga Africana fundada por estudantes de várias colónias portuguesas e que, no momento, residiam em Portugal13. É 11 Sobre esta temática veja-se João Carlos Paulo, «Exposições Coloniais» in Dicionário de História do Estado Novo, (dir. Fernando Rosas e Brandão de Brito), Vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 327-329. 12 Cf. Júlia Leitão de Barros, «Exposição do Mundo Português» in Dicionário de História do Estado Novo, (dir. Fernando Rosas e Brandão de Brito), Vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 325-327. 13 Cf. Pedro Pezarat Correia, «Descolonização» in Do Marcelismo ao Fim do Império, Lisboa, Editorial Notícias, 1999, p. 112. 6 nestes delegados que se podem encontrar os alicerces mais profundos do desejo de emancipação dos povos africanos dos territórios que, havia pouco mais de trinta anos, tinham sido ocupados e submetidos ao domínio colonial no sentido que se aprovara no Congresso de Berlim. Entretanto, nos anos 20, surgem em Angola a Liga Angolana e o Grémio Africano; em Moçambique, o Centro Associativo dos Negros de Moçambique, a Associação Africana e a Associação dos Naturais de Moçambique; na Guiné, a Liga Guineense14. Foi preciso o mundo entrar em nova convulsão bélica para que outro impulso surgisse e catapultasse os movimentos animadores das autonomias coloniais. As invasões japonesas das colónias orientais da França e da Holanda, bem como de alguns territórios da Grã-Bretanha, puseram em causa a autoridade das potências colonizadoras junto das populações, mas, em especial, também junto das elites que já então pugnavam pelo direito à autonomia, ainda que de uma forma pouco efectiva. A simples transferência de soberania de um Estado europeu para um oriental desencadeou o processo de inaceitação de retorno ao estatuto anterior15. Foi pelos territórios franceses do Oriente que começou a luta de autodeterminação e independência de todas as colónias16. Corriam ainda as operações militares na Europa, durante a 2.ª Guerra Mundial, quando Winston Churchill se viu obrigado a aceitar os princípios anti-coloniais defendidos por Roosevelt e expressos na Carta do Atlântico, em nome de um balanceamento de poder entre a União Soviética expansionista, os EUA, capazes de lhe oporem resistência, e a Grã-Bretanha como potência já sem capacidade de intervenção mundial, mas tentando ainda alcandorar-se a uma posição cimeira na conjuntura pósguerra17. A vontade de Roosevelt impôs-se e Londres teve de admitir que, findas as hostilidades, só lhe restava caminhar a passos apressados para a cedência de autodeterminações nos territórios a que ainda chamava colónias. A posição britânica implicitamente arrastava a de todos os outros Estados europeus coloniais. Depois da 14 Idem, op. cit., p. 113 É fundamental, para conhecer a história dos movimentos associativos na antiga África Portuguesa a obra de Mário Pinto de Andrade, Origens do Nacionalismo Africano, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997. 15 Cf. Marc Ferro, História das colonizações. Das conquistas às independências. Sécs. XIII-XX, Lisboa, Editorial Estampa, 1996, pp. 315-316. 16 Cf. Philippe Moreau Defarges, As Relações Internacionais desde 1945, Lisboa, Gradiva, pp. 35-37 e, também, James Joll, A Europa desde 1870, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982, p. 688. 17 Cf. Henry Kissinger, Diplomacia, Lisboa, Gradiva, 1996, pp. 348-350 7 União Soviética, os Estado Unidos tornavam-se os campeões do anti-colonialismo, obrigando alguns Estados europeus a fazer uma reviravolta no seu posicionamento no mundo. Portugal ia ser arrastado neste novo turbilhão. No meio do ano de 1945, terminadas as hostilidades, foi fundada a Organização das Nações Unidas (ONU) com base na Carta, documento que explicita os objectivos que norteiam aquele que pretende ser o fórum dos Estados e, ao mesmo tempo, o harmonizador das querelas que entre si se possam desenvolver. Pesem embora todas as boas intenções que nortearam os primeiros Secretários-Gerais, o certo é que, entre a sua fundação e o fim da guerra fria, a ONU foi um instrumento quase nulo nas relações internacionais, tendo estado a sua actuação, desde o final da década de 50 até aos anos 70, mais virada para os problemas do chamado Terceiro Mundo, em particular para os da descolonização, do que para a resolução do potencial confronto entre as super potências da época18. A independência da Índia e do Paquistão foi proclamada a 15 de Agosto de 1947, dando lugar a uma retirada precipitada da Grã-Bretanha do cenário oriental19. Uma vez mais, a posição britânica condicionou a política colonial portuguesa. Com efeito, ainda se preparava a saída inglesa e já, em 1946, Jawaharlal Nehru levantava a questão da presença nacional nos territórios da costa do Malabar (Goa, Damão e Diu). Salazar não acreditava que o Governo indiano recorresse à força, todavia, considerava já a necessidade de se desenvolverem acções na frente diplomática, argumentando com a falácia de que os naturais daqueles territórios só do ponto de vista geográfico eram indianos, porque, culturalmente, estavam em plano de igualdade com os europeus20. Em 1950, o Governo da União Indiana foi peremptório na afirmação de soberania sobre os territórios do chamado Estado Português da Índia que incluíam os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, contíguos a Damão. O Estado Novo, conduzido por Salazar, foi intransigente, levando a situação ao ponto de só deixar como saída possível a agressão armada. Em Maio de 1952, a União Indiana encerrou a sua legação diplomática em Lisboa e dois anos depois voluntários pacifistas indianos, com o apoio da polícia da 18 Cf. Pascal Boniface (Dir.), Dicionário das Relações Internacionais, Lisboa, Plátano, 1997, pp. 240-244. 19 Cf. Bernard Droz e Anthony Rowley, História do Século XX, 3.º Vol., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991, pp. 179-181. 20 Yves Léonard, «O Ultramar Português» in História da Expansão Portuguesa, (dir. Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri), vol. 5, Lisboa, Círculo de Leitores, 1999, pp. 33-34. 8 União, invadiram os enclaves adjacentes a Damão. Em Dezembro de 1954, Portugal foi admitido como membro da ONU e de imediato o Governo de Lisboa interpôs no Tribunal Internacional de Justiça da Haia um pedido de reconhecimento ao direito de acesso aos enclaves ocupados. Em Abril de 1960, o Tribunal reconheceu a Portugal o que este havia demandado segundo regulamentação a estipular pela União Indiana. O caminho para a solução bélica acabava de ser imposto ao Governo de Nova Deli21. Foi isso que veio a acontecer em 196122. No entretanto, as negociações tornaram-se no amortecedor que permitiu aos movimentos africanos defensores da independência iremse organizando e difundindo os seus ideais pelas populações. Como resultado das descolonizações, começadas primeiro no Oriente, em Abril de 1955, reuniram-se em Bandung vinte e nove Estados, entre os quais uns poucos africanos, que recentemente haviam ascendido à condição de independentes. Ali concertaram uma posição comum a adoptar face à conjuntura existente: manter uma posição de neutralidade equidistante dos dois grandes blocos que se opunham — o capitalista e o comunista; destruir o apartheid na África do Sul; apoiar activamente os povos ainda colonizados de modo a que pudessem alcançar rapidamente a independência23. Esta Conferência constituiu um marco decisivo na luta anti-colonial que se veio a repercutir não só no seio da ONU como, também, e com efeitos mais práticos, em África, nomeadamente nas colónias portuguesas.

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