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OPERAÇÃO « MAR VERDE» O PAIGC ESTEVE A PRAZO.


A OPERAÇÃO MAR VERDE

Parte 1 – O contexto da guerra na Guiné

Desde 1963 que as Forças Armadas Portuguesas enfrentavam uma guerra de guerrilha levada a cabo pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC). Apesar de ter promovido acções de desobediência em 1961, ano em que as atenções de Portugal estavam centradas no início da guerra em Angola, foi a partir de Janeiro desse ano que o partido independentista, apoiado pela União Soviética e respectivo bloco empreendeu aquela que foi a mais difícil guerra de guerrilha que Portugal teve de enfrentar.

As condições do teatro de operações eram precisamente as mais desfavoráveis a Portugal. Primeiro que tudo, a exiguidade do território (36.125 Km2), sem profundidade estratégica. Segundo, o facto de, na sequência da independência das colónias francesas e britânicas, a Guiné se ter tornado num pequeno enclave colonial europeu numa região de novos estados independentes politicamente adversos a Portugal. Este era o caso de ambos os países vizinhos, a Guiné-Conakry (pró-soviético) e o Senegal (seguindo uma política de vertente terceiro-mundista, ainda que refreada pela França), que permitiam o uso dos seus territórios como santuários para o PAIGC.

A geografia era problemática, sendo a maior parte do território um verdadeiro labirinto de rios e canais por entre pequenas ilhas e penínsulas, sendo que aquando da maré cheia um terço do território fica submerso, e aquando da maré vazia ficam a descoberto extensas áreas lodosas de difícil transposição. A pouca profundidade das vias marítimas limitava grandemente a navegação, colocando limites ao tamanho de navios militares e civis, e a eficiência do transporte marítimo, o que tinha consequências económicas. A rede viária era precária fora das poucas grandes cidades, o mesmo se podendo dizer das infra-estruturas portuárias, à excepção do porto de Bissau. Fora das savanas e áreas montanhosas (pouco elevadas) do interior, o clima é inóspito e insalubre, com temperaturas e humidade relativa muito elevadas ao longo de todo o ano, sendo habituais temperaturas muito acima de 40º Celsius. As selvas litorais contêm todos os elementos naturais habitualmente nocivos à presença humana.

A grande heterogeneidade étnica e religiosa da população indígena não era necessariamente um obstáculo, uma vez que existiam, ao mesmo tempo, grupos favoráveis e desfavoráveis a Portugal. Mas esse contexto, onde coexistia um grande número de línguas e dialectos locais, aliados a hábitos culturais, sociais e religiosos diferentes, obrigava a uma multiplicação das adaptações de procedimento que as Forças Armadas tinham que fazer, de acordo com os interesses tácticos e diplomáticos, no relacionamento com as populações. Esse esforço foi por demais notório a partir do momento em que foram criadas unidades militares formadas exclusivamente por indígenas, tanto regulares como milicianas, numa incorporação que em 1974 atingiu os 70% do efectivo total português, 80% se contabilizarmos apenas o Exército.

A juntar a estes factores de mais directa influência no desenrolar das operações militares, havia aspectos que levavam ao questionar do porquê Portugal investir na defesa da sua presença na Guiné. Primeiro, o facto da Guiné ser um território extremamente pobre e atrasado, com escassos recursos naturais. Em termos económicos, Portugal não tinha proveitos com a Guiné e, pelo contrário, as receitas da província eram insuficientes para sustentar a manutenção do aparelho administrativo, educativo e de assistência médica. A Guiné dependia de fundos metropolitanos e essa dependência multiplicou-se com o eclodir da guerra de insurreição, e a necessidade de estabelecer um vasto dispositivo militar. A realidade económico-cultural também espelhava a pouco numerosa população de origem europeia, resultado do clima, e por consequente o pouco investimento público no território, sendo de notar que a administração pública era gerida por cabo-verdianos e parte substancial da actividade comercial era feita por imigrantes libaneses e sírios. Estes aspectos levavam os militares (os europeus) a questionarem a razão de ser do esforço de guerra, com consequências na motivação e moral das tropas.

Guerrilheiros do PAIGC

Mas havia três argumentos fortes para Portugal justificar o esforço na Guiné. Primeiro, a maior parte da população indígena era favorável a permanecer portuguesa, por várias razões. Num país com diversidades étnicas e religiosas, em que Portugal agia como elemento neutro e estabilizador entre rivalidades locais, a presença portuguesa era encarada como um garante de Paz. Também o facto do movimento independentista, o PAIGC, ser de ideologia comunista – sendo apologista de grandes alterações na organização social, económica, cultural e religiosa do país – valeu-lhe a desconfiança e inimizade de parte significativa da população (a começar pelos muçulmanos, o segundo grupo religioso mais numeroso, com 40% da população), que não aceitava a perspectiva de alterar radicalmente o seu modo de vida e as suas instituições. Sob soberania portuguesa, a população da Guiné não só era livre de manter o seu modo de vida como tinha os benefícios de viver sob uma administração de qualidade europeia (a título de exemplo, o Hospital Central de Bissau era o melhor e mais bem equipado de toda a África Ocidental).

A juntar a isto, com o correr do tempo, foram sendo conhecidas as más experiências de outros países africanos no pós-independência, com desastres económicos, guerras civis e regimes tirânicos que tornaram a vida de povos inteiros num calvário, o que ainda mais desprestigiou a opção independentista. Apesar de, com o decorrer da guerra e do contacto do PAIGC com as populações, uma percentagem cada maior transferir a sua lealdade para o lado independentista, deu-se a réplica de sinal contrário, com o aumento do apoio a Portugal por parte da restante população. Isto estaria na origem nos planos, avançados por ambos os lados, de encontrar uma solução política para a Guiné passando por uma autonomia em vez de uma independência.

Uma típica lancha de patrulha portuguesa: a LFP Aljezur (da classe Alvor), num rio da Guiné

Outro argumento de peso era a situação estratégica da Guiné, fornecendo um ponto de implantação na África Ocidental, a meio caminho entre a Europa e Angola, constituindo uma eventual escala na Rota do Cabo e nas rotas marítimas e aéreas portuguesas. Este aspecto tornou-se ainda mais importante a partir da vaga de independências de 1960, com o boicote dos novos estados africanos à passagem de navios e aviões portugueses pelos seus territórios. A Guiné também constituía um importante ponto de apoio militar (para navios e aviões) na costa oeste-africana, à semelhança do Senegal para os franceses (que aí mantiveram importantes bases navais, aéreas e terrestres depois da independência).

A terceira razão forte – e a principal – prendia-se com o precedente político que criaria a concessão da independência ou de um estatuto de autonomia à Guiné que, mesmo havendo vários argumentos válidos para o fazer, poderia ter consequências nos planos que Portugal tinha de manter os restantes territórios em África (para os quais o Governo não considerava a hipótese de uma concessão semelhante). Esta era uma questão polémica dentro e fora do regime político e das Forças Armadas, sem que nunca houvesse um consenso.

Por seu lado, o PAIGC tinha muito a seu favor. A juntar a todas as dificuldades com que Portugal se debatia e que para si eram vantagens, o PAIGC não tinha movimentos independentistas rivais significativos (o MLG e a FLING, esta última apoiada pelo Senegal, tinha pouca expressão e mais tarde perdeu o apoio da Organização de Unidade Africana, a OUA), tinha uma chefia muito competente na pessoa de Amílcar Cabral (que conseguia superar as rivalidades internas entre cabo-verdianos e guineenses – estes últimos que constituíam a quase totalidade dos guerrilheiros no terreno, e obter apoios internacionais), e os seus combatentes tinham um conhecimento do terreno que os congéneres portugueses só adquiriam com o tempo.

Decisivo na correlação de forças entre Portugal e o PAIGC eram os apoios externos a cada um dos lados. Num conflito que se inseria no contexto da Guerra Fria, um dos lados era apoiado pelo país-líder do seu bloco estratégico (o PAIGC pela URSS) e o outro não. Portugal não só não era apoiado pelos Estados Unidos, como este país era abertamente hostil à presença portuguesa em África durante a década de 60 (tendo criado e sustentado as guerrilhas da FNLA em Angola e FRELIMO em Moçambique, que iniciaram a guerra nestes dois países). Na questão africana, Portugal era ostracizado pela maior parte da dita Comunidade Internacional, tendo contra si todo o Bloco Comunista, sendo alvo de sanções das Nações Unidas, da totalidade dos países do continente africano (embora muitos países fossem na prática neutros, só tinha aliados na África do Sul e na Rodésia), e na Europa contava apenas com a solidariedade da França, Alemanha e Espanha. Estes três países aceitavam furar o embargo de venda de armas a Portugal decretado pelas Nações Unidas em 1961, tornando-se alemães e franceses nos principais fornecedores de equipamento militar (embora, em muito casos, a preços “de embargo”).

Ao contrário, os Estados Unidos (que haviam decretado um embargo unilateral a Portugal) e o Reino Unido, aliados na OTAN, aceitavam fornecer apenas equipamento que não se destinasse ao Ultramar, mas ainda assim a disponibilidade era pouca. Sendo que no início da guerra, parte substancial do equipamento militar em serviço era de origem norte-americana, a situação era grave. Mesmo o que tinha sido adquirido no âmbito bilateral (nos anos 40 e 50) e não estava sujeito a limitações de utilização, sofria de igual maneira as sanções relativas a peças de reposição e munições, que só podiam ser adquiridas (na maior parte dos casos, com dificuldade) de outras origens no mercado internacional, frequentemente no mercado negro.

Isto causava graves limitações, nomeadamente à Força Aérea, ao não poder utilizar aviões que nalguns casos tinha em grande quantidade. Um desses casos foi a utilização, precisamente na Guiné, de caças North American F-86 Sabre, entre 1961 e 1963, ano em que, face à grande pressão dos EUA, a FAP se viu obrigada a fazer regressar a frota a Portugal. A FAP teve de assentar o seu poder de ataque nos North American T-6G, e só voltou a dispor de caças a jacto no território em 1966, com a chegada de oito Fiat G-91, de um lote adquirido à Luftwaffe. Nesse mesmo ano, chegaram os primeiros helicópteros Alouette III à Guiné. No conjunto, os países que aceitavam vender equipamento a Portugal (a Alemanha e sobretudo a França; em menores quantidades a Espanha, África do Sul e Israel) produziam material em variedade e qualidade, mas havia alguns equipamentos e sub-sistemas que só era possível obter dos EUA e Reino Unido (como mísseis terra-ar), e cuja falta se foi tornando cada vez maior. A pequena indústria de defesa portuguesa foi-se desenvolvendo até atingir a auto-suficiência na sustentação de forças terrestres ligeiras, e no fornecimento de dezenas de lanchas fluviais e costeiras à Marinha (no caso de navios oceânicos, era necessário importar armamento naval). Mas era pouco face às necessidades.

O pequeno mas robusto Alouette III foi um dos cavalos de batalha das operações em África.

Em contrapartida, tal como os outros movimentos independentistas, o PAIGC recebia remessas de armamento ligeiro em quantidade e qualidade do Bloco Comunista (e também treino na Argélia e Marrocos, e apoio financeiro de alguns países da Europa, nomeadamente a Suécia, Noruega e Dinamarca), chegando nalguns casos a obter armamento superior ao existente do lado português (equipamentos de comunicações, tanques anfíbios PT-76, mísseis terra-ar SA-7 – entre outros, como veremos adiante). O treino, especialmente o ministrado por conselheiros militares cubanos, a partir de 1965, era extremamente competente, e fez do combatente do PAIGC um dos mais eficientes guerrilheiros de África, embora o método de ataque às forças portuguesas mais frequente fosse pelo uso de minas, pela montagem de emboscadas, e por ataques do tipo toca e foge a aquartelamentos (usando morteiros e canhões sem recuo). A sua melhor estratégia era a de desgaste.

O PAIGC tinha como seu santuário a vizinha Guiné-Conakry (antiga Guiné Francesa), tendo neste país campos de treino e a sua sede, na capital, Conakry. Beneficiava do total apoio do regime ditatorial do pró-soviético Sékou Touré, que consentia que usasse o seu território como base para infiltrar-se na então Guiné Portuguesa. Sem surpresas, a principal zona de guerra foi precisamente no Sul, onde o PAIGC podia infiltrar e reabastecer facilmente as suas forças por via marítima e fluvial, bastando atravessar a fronteira para tirar partido das labirínticas condições hidrográficas.

A LFP (Lancha de Fiscalização Pequena) Arcturus, da classe Bellatrix, na Guiné

Do lado português, as Forças Armadas dispunham desde o início da guerra em Angola (em 1961) de uma doutrina de contra-insurreição madura, baseada no estudo atento da estratégia de «Guerra Revolucionária» (em especial o pensamento de Mao Tsé Tung) e nas lições recolhidas de outras experiências neste tipo de guerra, nomeadamente dos britânicos na Malásia e dos franceses na Indochina e Argélia. As Forças Armadas adaptaram-se e treinaram-se rapidamente para este tipo de guerra. Mas o facto da guerra em Angola ter começado de forma súbita e prematura em relação às previsões (em consequência da inesperada retirada da Bélgica do seu Congo, em 1960) apanhou as Forças Armadas em larga medida desprevenidas em termos de material. E o início do embargo internacional na mesma altura impediu que o processo de obtenção de armas e equipamento apropriado se iniciasse como previsto. Isto obrigou ao uso de equipamento datando da Segunda Guerra Mundial (que foi maioritário durante a primeira metade dos anos 60), e a adaptações ad hoc, como a utilização de aviões de patrulha marítima Lockheed PV-2 Harpoon para apoio aéreo próximo. Na Marinha, a esquadra também estava bastante envelhecida, e em número insuficiente para patrulhar as águas da Guiné, Angola e Moçambique, as rotas marítimas entre os vários territórios e efectuar a escolta à navegação mercante e ao transporte de tropas. A situação só não era mais grave porque o maior esforço cabia à «poeira naval», as dezenas de pequenas lanchas de patrulha e transporte que actuavam nos rios, construídas em estaleiros portugueses, e que não requeriam a importação de armamento.

Fuzileiros, desembarcando de um bote pneumático Zebro III, na Guiné

Ainda no âmbito dos apoios externos, Portugal era em regra bastante maltratado pelos media e meios culturais internacionais, chegando ao ponto de estes conotarem as tropas portuguesas com a ideologia nazi. Ao contrário, o PAIGC beneficiava (como era habitual com os movimentos independentistas africanos) da simpatia da imprensa de esquerda (e não só) no Ocidente, que ajudou a construir uma imagem romântica dos guerrilheiros, e a promover internacionalmente Amílcar Cabral. Mas nem só do Bloco Soviético, da OUA e da esquerda chegavam apoios. A título de exemplo, no princípio dos anos 70, a maior parte dos veículos de transporte usados pelo PAIGC eram camiões Volvo oferecidos pela Suécia. Por fim, a Igreja Católica, seguindo as ideias do Concílio Vaticano II, enfatizando a chamada «Teologia da Libertação», alinhava pelos movimentos independentistas. No caso da Guiné, muitos missionários católicos (nomeadamente italianos) trabalhavam no sentido de virar os sentimentos da população contra Portugal.

No entanto, e apesar dos obstáculos de toda a ordem, em 1966, e num balanço geral, a guerra em África corria favoravelmente a Portugal. Em Angola, e contra as previsões de toda a gente em 1961, as Forças Armadas estiveram nessa altura muito próximas da vitória total e do aniquilamento dos movimentos independentistas. Em Moçambique, onde a guerra começara em 1964, a actividade da FRELIMO era intensa, mas as acções da guerrilha (por enquanto) estavam confinadas à fronteira Norte (com a Tanzânia) e ao litoral do Lago Niassa, não afectando a vida do resto do país. Mas, ao contrário, na Guiné a situação ia-se deteriorando gradualmente. Cercadas num território exíguo, as Forças Armadas eram obrigadas a uma guerra defensiva. Perante a insuficiência de meios humanos e materiais, a pressão do PAIGC e a necessidade de criar alguma profundidade estratégica, o dispositivo militar concentrou-se no litoral e nas principais cidades, onde estava a maioria da população. Isto fez com que o PAIGC pudesse circular por uma parte do território, mesmo afastando-se dos seus santuários e apoios logísticos, e tomar contacto com a população local, atraindo-a para o seu lado. Em 1963, chegou mesmo a implantar-se no Sul, nas Ilhas de Como, que utilizava como base logística. Só muitos meses depois, em Janeiro de 1964, foi de lá expulso pela maior operação anfíbia efectuada por Portugal em toda a guerra, a Operação Tridente, que envolveu uma força de desembarque de 1200 homens do Exército, Fuzileiros e Pára-quedistas, apoiados por bombardeamento naval e aéreo contra um efectivo estimado de 300 guerrilheiros do PAIGC e também 15 militares da Guiné-Conakry. Da derrota, a guerrilha reteve mais uma vez a lição que enfrentamentos directos com forças portuguesas acabariam sempre em desastre e, pelo contrário, a estratégia de desgaste era a que lhe trazia dividendos. E, ano após ano, o desgaste foi-se sentindo cada vez mais do lado português, com o moral das tropas regulares a decrescer, ao mesmo tempo que a população do interior aderia cada vez mais ao PAIGC. A somar a isto havia o mau desempenho do alto-comando sob as ordens do general Arnaldo Schultz, governador e comandante-chefe desde 1964. Nos primeiros meses de 1968, altura em que as 25.000 tropas portuguesas tinham já de enfrentar entre 8 e 10.000 guerrilheiros, e com o PAIGC a conseguir implantar-se e estruturar-se no interior do território, a situação deteriorou-se consideravelmente, acabando por tornar-se precária. Perspectivou-se a derrota militar.

A densa vegetação nas margens permitia a fácil montagem de emboscadas nos rios

Mas 1968 traria mudanças de vária ordem. Em Maio, Salazar tomaria uma das suas últimas decisões importantes ao fim de décadas à frente de um governo autocrático: substituir Schultz, descredibilizado aos olhos de militares e civis, pelo então brigadeiro António de Spínola (mais tarde promovido a general). À frente do governo e comando militar da Guiné passaria a estar um general fora do habitual, com um estilo de comando que passava pelo culto do próprio carisma, por demonstrações de coragem física nas deslocações às frentes de combate e por uma energia que contagiou as tropas, levantando-lhes o moral e assumindo a dimensão de uma lenda viva.

Mas as guerras não se ganham apenas com moral elevado e o novo comandante-chefe introduziu mudanças na maneira de conduzir a guerra. Começou por aplicar novas tácticas, entre elas um maior emprego de helicópteros, e operações de busca e destruição, ao estilo das efectuadas pelos norte-americanos no Vietname. Lisboa aceitou enviar-lhe um reforço de 10.000 homens, elevando o efectivo a 35.000. Mas Spínola não seguia uma estratégia apenas militar mas igualmente política de forma a enfrentar o PAIGC também neste campo. Criou órgãos representativos das várias etnias, que foram reunidos mais tarde no Congresso dos Povos da Guiné, de forma a conquistar a lealdade das populações, ou pelo menos obter a sua neutralidade. Conseguiu explorar inteligentemente as rivalidades inter-étnicas, minando a base de apoio do PAIGC, e acabaria por concluir uma aliança com a étnia Fula. Para levar a cabo os seus planos, substituiu vários oficiais superiores, rodeando-se de um grupo de jovens e bem preparados oficiais, de patente mais baixa, peritos em operações de contra-subversão e guerra psicológica. Ficaram conhecidos pelos rapazes de Spínola, e constituíam a sua guarda pretoriana. Fazendo uso de novos meios e tácticas psicológicas, o impacto psicológico de Spínola foi também devidamente rentabilizado nos media nacionais e internacionais. A imprensa internacional começou a interessar-se por este general de monóculo, vestido de camuflado e que acompanhava as tropas debaixo de fogo, e tornou-se numa figura internacional. Isto fez com que nos media internacionais começasse a passar outra mensagem que não apenas aquela que a Guiné era um sítio de África onde os portugueses bombardeavam com napalm.

O general António de Spínola (à direita) numa zona de combate, debaixo de fogo, em 1969.

1968 foi também o ano da substituição de Salazar, por razões de saúde, no cargo de Presidente do Conselho, pelo Prof. Marcello Caetano. Pertencendo à ala liberal do regime, Caetano defendia uma reforma no relacionamento de Portugal com as suas colónias, mediante a adopção de um modelo federal, um projecto que tinha a oposição dos sectores ortodoxos do regime e das Forças Armadas. Marcello Caetano era também favorável ao aumento das despesas militares, ao contrário de Salazar que tinha imposto limitações financeiras demasiado severas, mesmo tendo em conta de que a guerra era prolongada e era necessário geri-la de forma sustentável. Mas Marcelo Caetano teve outra grande diferença em relação a Salazar. Com um discurso reformador a favor de uma autonomia progressiva e através de visitas aos territórios em África, procurou – com sucesso – conseguir o apoio dos sectores das sociedades coloniais para levar a cabo reformas. Nas ruas das grandes cidades africanas houve multidões a recebê-lo.

Helicópteros Alouette III da Força Aérea Portuguesa

Por fim, outra alteração teve lugar mas essa fora de Portugal. Nos EUA, Richard Nixon substituía Lyndon Johnson como presidente, representando uma viragem à direita e uma alteração da política em relação a Portugal. O antagonismo dos EUA à presença de Portugal em África datava desde o final da Segunda Guerra Mundial, tornando-se gradualmente mais evidente durante a administração Eisenhower, tanto no discurso como com a recusa em fornecer equipamentos militares cujo uso em África era previsível. Com Kennedy, e perante os processos de descolonização por parte do Reino Unido e França (ocasionando que muitos dos novos estados se tornassem pró-soviéticos), os EUA procuraram conseguir bastiões seus em África e, ao oporem-se à África do Sul e à presença de europeus em África, conseguir a simpatia do Terceiro Mundo, que sentiam estar-lhes a fugir para a esfera soviética. A súbita concessão da independência pela Bélgica ao seu Congo estabeleceu o precedente. A Bélgica fugiu precipitadamente perante o massacre dos seus colonos, deixando o caminho livre a que os EUA e a URSS se degladiassem à vontade pelo controlo do estratégico território. Esperava-se que o mesmo acontecesse a Portugal e, sob a política de Kennedy, os EUA patrocinaram os movimentos independentistas que iniciaram as insurreições em Angola (pela UPA) e Moçambique (FRELIMO), tentando antecipar-se a iniciativa idêntica por parte da URSS. Também formalizaram a sua posição quanto ao fornecimento de armas, decretando um embargo em 1961. Os EUA procuraram derrubar Salazar através de uma tentativa falhada de golpe de estado em Lisboa, também em 1961, de forma a patrocinar a sua substituição por alguém favorável. Nesse ano, quando Portugal tentava lidar com a emergência em Angola, os EUA tinham atitudes provocatórias, com a presença de navios e aviões militares seus em Luanda, a pretexto de assistirem as operações no Congo. A ideia que tinham é que Portugal não conseguiria manter um esforço militar em Angola e o regime cairia com a derrota, seguindo a lógica (muito americana) de um pontapé forte na porta e a barraca cai toda de uma vez. Mas não só o poder português em Angola não caíu como um castelo de cartas, como conseguiu dominar a insurreição passados uns meses, graças a uma formidável mobilização de forças que ninguém julgou possível. As péssimas relações luso-americanas tiveram como resultado a não-renovação do acordo para o uso da Base das Lajes, nos Açores, em 1962. Frustrados os planos de Kennedy, as atenções em Washington voltaram-se para problemas que vinham tornando-se cada vez maiores: o aumento do poder do Pacto de Varsóvia, Cuba e o Vietname. Este último foi herdado pelo seu sucessor Lyndon Johnson, centrando as suas preocupações. A posição política dos EUA para com Portugal manteve-se a mesma, mas os apoios aos movimentos guerrilheiros pró-americanos – que tinham já a competição dos pró-soviéticos – foram sendo reduzidos, acabando por perder a FRELIMO para a influência da China. A administração Johnson tornou-se indiferente a Portugal, estando demasiado ocupada a tratar de sucessivos problemas deixados pela desastrosa política externa de Kennedy, a começar pelo atoleiro do Vietname.

LDMs (Lanchas de Desembarque Médias) atracadas à LFG Lira, na Guiné.

Nixon herdara este grande problema, e tinha muitos outros para resolver. Johnson tinha passado o tempo todo a apagar incêndios enquanto outros começavam ao lado, e o novo presidente não queria passar pelo mesmo calvário. Ao contrário de Johnson, Nixon era um político esclarecido em assuntos internacionais e rodeou-se de figuras pertencentes aos meios da direita americana e à elite universitária. Isto ocasionou que subissem a lugares de relevo na Casa Branca alguns simpatizantes de Portugal. Porém este não era o caso do National Security Adviser, Henry Kissinger. Nixon e Kissinger comandavam o a política externa norte-americana, assistidos por um círculo estricto, e à revelia do predominantemente esquerdista Departamento de Estado. Kissinger imprimiu uma abordagem realista e pragmática à política externa, procurando evitar que os EUA se envolvessem em questões secundárias, de forma a concentrarem-se em solucionar o envolvimento no Vietname e a enfrentarem a URSS decisivamente. Para isso, precisavam de reforçar as alianças regionais, e deixar que fossem os seus aliados a cuidarem dos pequenos problemas.

Em relação a Portugal, o pragmatismo aconselhava uma reaproximação discreta a este incómodo aliado, de forma a garantir que os EUA poderiam dispor da estratégica base nos Açores (que desde 1962 usavam como um favor político mas sem um compromisso por parte de Portugal), e que os territórios portugueses em África (nomeadamente Angola e Moçambique) e a África do Sul não só não caíssem na órbita soviética, mas também servissem para travar a expansão soviética em África, no Atlântico e no Índico, caso contrário criar-se-iam mais problemas para os EUA. Essa era a opinião do Pentágono e da CIA (que sempre discordaram de Kennedy e Johnson neste assunto). Portugal agiu nos bastidores de Washington a favor de uma mudança de atitude em relação a si, à África do Sul e à Rodésia, e em breve obteve resultados. Para convencer o Departamento de Estado quanto à alteração de política, Kissinger encomendou em 1969 o National Security State Memorandum 39 (NSSM-39) um estudo feito por um grupo de peritos dos Departamentos de Estado e da Defesa que serviria para sustentar a mudança de política. Apesar dos atritos entre os dois sectores, as conclusões deste estudo apontavam que os portugueses estavam em África para ficar e que a melhor opção para os EUA obterem um acordo sobre o uso da Base das Lajes era relaxar as pressões diplomáticas sobre Portugal – mesmo continuando a pressionar para que fossem feitas reformas políticas – e excluir do embargo equipamento não-letal de duplo uso, civil e militar, que pudesse ser útil às Forças Armadas portuguesas, como aviões de transporte e camiões. Isto ficava muito aquém do desejado por Portugal, mas sempre era uma mudança de atitude por parte de Washington. Os EUA passavam a distanciar-se dos movimentos independentistas e abster-se de criticar Portugal publicamente, além de fazerem promessas de fornecimento de equipamento militar. Por outro lado, e em contrapartida do não fornecimento de armamento, foi dado treino a oficiais portugueses em tácticas anti-guerrilha, partilhando a experiência adquirida no Vietname. O uso das técnicas americanas abriu uma fase na guerra que ficou conhecida pela da vietnamização. No cômputo geral, a cooperação militar dada pelos EUA não era muito significativa. A nível de material, o que de mais importante foi vendido foram dois Boeing 707 para a frota de transporte da Força Aérea, doze helicópteros Bell 212 utilizados em Moçambique e um navio hidrográfico emprestado a custo zero. Os muito necessários caças de ataque, helicópteros Bell UH-1 em grande número, e aviões de transporte Lockheed C-130, que os EUA se recusavam a vender a Portugal desde os anos 50, nunca vieram. Mesmo assim foi importante a mudança de posição política, que aumentava a confiança de Portugal e dava mais liberdade de acção às suas Forças Armadas.

O general Spínola, passando revista a Comandos Africanos.

Na Guiné, Spínola tinha conseguido salvar a situação mas nem por isso esta se tornara favorável a Portugal. Havia um impasse, com as forças portuguesas a controlarem as cidades e a maior parte da população, e o PAIGC a controlar o interior.

Era claro que, mesmo com o apoio da maioria da população guineense, Portugal podia conter as acções do PAIGC mas não conseguia causar-lhe danos suficientes a ponto de poder extingui-lo. O PAIGC podia sempre contar com o refúgio dos países vizinhos, sobretudo enquanto na Guiné-Conakry estivesse um regime que lhe fosse favorável, e não tinha problemas de obtenção de armamento por apoio externo. Para se atingir o PAIGC seriamente, teria de se atacar estes factores.

E era também claro que o PAIGC, por muito bem treinado e armado que estivesse, e mesmo tendo parte da população do seu lado, nunca poderia fazer mais do que provocar desgaste às forças portuguesas. Estava fora de questão poder derrotar Portugal, e tentar tomar as cidades era arriscado. Atacar Bissau, que tinha um plano de defesa bem elaborado prevendo essa possibilidade, era suicídio. Enquanto a Marinha Portuguesa pudesse assegurar a navegação nos rios e o acesso aos portos, nada impedia que o dispositivo fosse mantido. Para alterar a situação, seria portanto necessário enfrentar os navios de guerra portugueses.

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PARTE 2

A OPERAÇÃO MAR VERDE

Parte 2 – A decisão e a preparação

Uma das preocupações de Spínola para enfraquecer o PAIGC era a de estancar o fluxo de abastecimentos, grande parte do qual era feito por via marítima e fluvial. Era importante negar ao PAIGC essa capacidade e para isso, em princípios de 1969, foi feito um vasto trabalho de recolha de informações sobre a frota de embarcações do PAIGC. No decorrer deste trabalho ficou-se a saber que o PAIGC tinha, para além de três pequenos navios e de um número indeterminado de canoas e botes a motor, de duas ou três lanchas rápidas do tipo P6, fornecidas pela União Soviética. Este país tinha igualmente fornecido à Guiné Conakry quatro lanchas rápidas do tipo Komar.

Integrado no quartel-general de Spínola estava o Corpo de Operações Especiais que, comandado pelo capitão-tenente Guilherme Alpoim Calvão (dos Fuzileiros) preparou e executou uma série de acções contra os meios navais do PAIGC. Estas consistiram em emboscadas fluviais montadas pelos Fuzileiros, em botes pneumáticos, que tomavam de assalto os navios do PAIGC. Foram assim capturados e destruídos dois navios, o Patrice Lumumba, da Guiné-Conakry mas ao serviço do PAIGC (Operação Nebulosa, em Agosto de 1969) e o Bandim (Operação Gata Brava, em Fevereiro de 1970, em território da Guiné-Conakry), este último especialmente importante para o movimento guerrilheiro. Em resultado destas operações, a capacidade de abastecimento do PAIGC foi severamente afectada.

Mas as pequenas lanchas rápidas do PAIGC e da Guiné-Conakry constituíam um sério risco para os navios portugueses, sobretudo se usadas de noite ou tirando partido das condições hidrográficas da Guiné Portuguesa. As P6 eram um modelo soviético dos anos 50, armadas de torpedos e canhões ligeiros.

Lancha torpedeira do tipo P6

Deslocamento: 75 toneladas; Dimensões (em metros): 25.7 x 6.1 x 1.8; Armamento: dois tubos lança-torpedos de 533mm e dois reparos duplos de 25mm: Propulsão: quatro motores diesel accionando quatro hélices, totalizando 4800 cv; Velocidade: 43 nós; Autonomia: 450 milhas náuticas a 30 nós; Tripulantes: 25.

As Komar eram semelhantes, tendo entrado ao serviço na URSS em 1961, sendo uma evolução das P6, mas em que o armamento principal eram mísseis anti-navio SSN-2 Styx, guiados por radar, com um alcance de 23 milhas náuticas.

Lancha de ataque armada com mísseis do tipo KOMAR

Deslocamento: 80 toneladas; Dimensões (em metros): 25.5 x 6 x 1.8; Armamento: dois mísseis SSN-2 Styx e um reparo duplo de 25mm: Propulsão: quatro motores diesel accionando quatro hélices, totalizando 4800 cv; Velocidade: 40 nós; Autonomia: 400 milhas náuticas a 30 nós; Tripulantes: 25.

Foi uma lancha Komar egípcia que, em 21 de Outubro de 1967, afundou o contratorpedeiro israelita Eilat com o disparo de um Styx, tendo sido a primeira vez que um navio de guerra foi afundado desta forma.

Com estes navios, a superioridade naval portuguesa poderia ser posta em causa.

Alpoim Calvão, oficial treinado como mergulhador-sapador propôs a Spínola uma operação que neutralizasse esta ameaça, atacando as lanchas no porto de Conakry e afundando-as com minas-lapa colocadas nos cascos por homens-rã. O general Spínola e o Chefe de Estado da Armada, vice-almirante Armando de Roboredo concordaram com a operação que, naturalmente, teria de ser preparada no maior segredo.

Na sequência, Alpoim Calvão procurou obter minas-lapa, que na altura a Marinha não tinha, na África do Sul, onde eram fabricadas. As minas foram prontamente fornecidas pelos serviços secretos sul-africanos (Bureau of State Security – BOSS). Sem demoras nem burocracias, Alpoim Calvão trouxe as minas em simples malas de viagem, como um qualquer passageiro do Boeing em que regressou.

O comandante Guilherme de Alpoim Calvão

Também eram necessários planos actualizados do porto de Conakry. Para os obter, navios mercantes nacionais e estrangeiros em Bissau foram discretamente vasculhados até se encontrar um plano aceitável, apesar de desactualizado. Mesmo assim, foi necessário efectuar um reconhecimento a Conakry, em Setembro de 1969. Uma lancha de fiscalização grande (LFG), a Cassiopeia, foi disfarçada de navio do PAIGC, fora de Bissau, na ilha de João Vieira, onde a missão foi preparada. Caso algum navio se aproximasse da Cassiopeia, o navio hastearia a bandeira do PAIGC e do exterior só se veriam marinheiros negros. Foi o que aconteceu no trajecto, com o cabo-fuzileiro especial António Augusto da Silva, de boné de capitão-tenente na cabeça, que fazia continência (impecavelmente) aos pesqueiros encontrados.

Às zero horas de 17 de Setembro, foram avistadas as luzes da cidade de Conakry e, às duas da manhã, o navio posicionou-se no canal entre a península de Conakry e as ilhas de Loos, começando a recolher informação, com o seu radar, sobre as alterações feitas às infra-estruturas do porto, nomeadamente os molhes de acostagem. Uma hora depois, a tarefa estava concluída e a viagem de regresso iniciada, ainda que perturbada por uma enervante avaria dos geradores que obrigou o navio a fundear por pouco tempo em pleno canal de saída do porto.

Mas em Lisboa surgiram dúvidas quanto à validade da operação, nomeadamente da parte do Ministro do Ultramar, Joaquim da Silva Cunha. Ao mesmo tempo, em Bissau, Spínola e Calvão mudavam de planos quanto à operação. Alpoim Calvão propôs que já que se fazia um incursão a Conakry, se devia aproveitar a ocasião para libertar os militares portugueses feitos prisioneiros pelo PAIGC (cerca de vinte) e que eram mantidos na cidade. Spínola concordou e os planos para a operação foram sendo feitos.

No entanto, começaram a ser equacionados outros objectivos. Se para a Marinha existiam as lanchas Komar e P6, para a Força Aérea existiam os caças Mig-15 e Mig-17 da Guiné-Conakry que, se pilotados por soviéticos devidamente treinados (como acontecia frequentemente em países aliados da URSS) poderiam tirar partido das limitações da Força Aérea Portuguesa, cujos Fiat G-91 não estavam vocacionados para o combate aéreo. Destruir os Mig da mesma forma como se destruiriam as lanchas eliminaria esta ameaça à supremacia aérea portuguesa.

Mas o mais ambicioso dos novos objectivos foi o de organizar um golpe de estado em Conakry, derrubando o regime de Sékou Touré e colocando no poder um regime favorável a Portugal. Isto retiraria ao PAIGC o seu principal santuário e fonte de apoio, e poderia mesmo levar ao fim da guerra na Guiné Portuguesa. Mas também implicava uma operação em escala muito maior do que um simples raide de comandos, e com todos os riscos inerentes, militares e políticos. Havia muito a equacionar.

Ahmed Sékou Touré

Como tantos dirigentes do seu tempo, o marxista Ahmed Sékou Touré subiu ao poder por via da violência. De carteiro a maire de Conakry, com uma passagem na Assembleia Nacional francesa pelo meio, teve uma rápida ascensão na carreira política no espaço de uma dúzia de anos. O seu partido, o Parti Democratique de Guinée, ganhou as eleições de 1956 graças à violência dos seus bandos e com o apoio do Partido Comunista Francês, e Touré tornou-se governador de Conakry. Profundamente racista e anti-francês, fez com que em 1958, a Guiné-conakry fosse a única colónia da África Ocidental Francesa a rejeitar a manutenção de laços politico-institucionais com França no pós-independência. «Pois então não ficam nem com um tostão!» - decidiu De Gaulle. Proclamada unilateralmente a independência, em Outubro de 1958, a nova República da Guiné-Conakry, sob a chefia de Sékou Touré, torna-se numa ditadura comunista, adversa da França e com fortes laços com a União Soviética. Deste país recebe apoio militar e em contrapartida concede o uso do porto de Conakry por navios da Marinha Soviética. Com um dos regimes mais brutais que África já conheceu (mesmo pelos padrões do continente), Sékou Touré governa o país com mão de ferro, massacrando a etnia Fula no momento da retirada dos franceses, e perseguindo as autoridades tradicionais de forma a politizar a população em torno do seu poder. Apoia-se em bandos de jovens desempregados na miséria que por pouco dinheiro são recrutados para perseguir, prender, torturar e denunciar tudo e todos. Instala-se uma psicose de vigilância e denúncia entre a população. Em 1960, escasso ano e meio após a independência e em consequência do corte de relações com a França, a economia está arruinada e o descontentamento alastra. Ao longo dos anos sucedem-se as revoltas contra o regime. Umas reais, outras inventadas pelo próprio Touré como pretexto para prender, torturar e matar. A sua forma de governar tem tanto de tirânico como de absurdo. Instala no seu palácio doentes mentais, deficientes e albinos, que usa em sacrifícios humanos. Reclamou para o país águas territoriais de 130 milhas. Em 1971, fuzilou o filho de um antigo professor de escola, porque este lhe tinha dado más notas em 1936. Certa vez, um dos feiticeiros que o rodeavam disse-lhe que o seu regime cairia às mãos de alguém chamado David ou Ibrahim; em consequência, a Polícia prendeu durante anos todos os indivíduos com esses nomes no país.

Não seria, portanto, difícil obter a adesão da população para o derrube do regime. Mas Portugal não poderia fazer tudo sozinho.

Alpoim Calvão foi então informado pela PIDE/DGS, a polícia política portuguesa que acumulava as funções de serviços secretos, que havia já algum tempo que se mantinham contactos entre Portugal e o Front de Libération Nationale Guinéen (FLNG), o principal movimento de oposição na Guiné-Conakry, sediado em França, país que também procurava derrubar Sékou Touré. O Front reclamava contar com mais de 600.000 membros exilados na Costa de Marfim, Senegal e Gâmbia, e tinha feito a sua última tentativa de golpe em Março de 1969, sem sucesso. Desde 1964 que procuravam, também sem sucesso, o apoio das autoridades portuguesas. Mas agora Portugal tinha mudado de opinião, e passara a apoiar o movimento, incluindo com a criação do seu jornal, «La Guinée Libre», publicado em França. O aumento dos contactos com o FLNG permitiu às autoridades portuguesas tomar consciência da verdadeira dimensão do movimento e Spínola decidiu conceder-lhe a instalação do seu braço armado na Guiné Portuguesa, de onde partiria para a guerrilha no país vizinho. Mas uma posterior análise das possíveis consequências políticas (nomeadamente a provável reacção das Nações Unidas, da OUA e do Bloco Comunista) levou a concluir que apoiar uma guerrilha do FLNG poderia criar mais problemas do que resolver. Concluiu-se que a melhor opção acabaria por ser um golpe de estado do FLNG em Conakry, a partir do qual eclodiria um levantamento em todo o país, no meio do qual se desenrolaria a operação portuguesa. Seria uma solução rápida, decisiva e que colocaria a comunidade internacional perante um facto consumado. Afinal, nada de diferente do que os EUA ou a URSS faziam nas suas zonas de interesse.

Isto ia contra o pensamento corrente nos altos comandos portugueses. As pequenas incursões de tropas portuguesas além fronteiras, em perseguição do inimigo e para destruir as suas infra-estruturas, tinham-se tornado habituais ao longo dos anos. Mas as grandes operações eram encaradas como um risco demasiado grande, não do ponto de vista militar mas antes político. Poderiam servir de pretexto a uma intervenção internacional contra Portugal, sob a égide da ONU ou da Organização de Unidade Africana. Este era, aliás, um dos piores cenários que os decisores portugueses enfrentavam. Uma rara excepção a esta corrente de pensamento eram os planos para a invasão do Malawi no caso do regime pró-português de Hastings Banda estar em risco.

Mas em Lisboa, Marcello Caetano mostrava-se favorável a acções mais decisivas, facto a que não era alheia a mudança da política dos EUA em relação a Portugal. Em Julho e Agosto de 1970 teve lugar a Operação Nó Górdio, no interior da Tanzânia. 8.000 homens apoiados por aviões e helicópteros em perseguição da FRELIMO, atacando e destruindo as suas bases e transformando o Sul da Tanzânia no que a imprensa internacional descreveu como «um pequeno Vietname em África». Por seu lado, Spínola argumentava que só atingindo o PAIGC no seu santuário é que se lhe causavam danos relevantes. Caetano concordou com a operação na condição de que fosse feita de maneira a ninguém se aperceber de que Portugal estava envolvido no golpe do FLNG. Caso contrário, a descoberta do envolvimento português poderia ter graves consequências a nível internacional. Prosseguiram os preparativos para a operação.

A tarefa mais exigente foi formar a força armada do FLNG. O recrutamento foi feito através de contactos com os dirigentes do movimento na Europa e os vários núcleos de oposicionistas do Front dispersos por países da região. Este era um trabalho difícil, não só porque muito destes indivíduos eram vigiados pelas autoridades desses países, mas também porque frequentemente já estavam instalados nos países de exílio, com os seus empregos e famílias. Mas foi uma tarefa bem sucedida, e os indivíduos recrutados (entre os quais antigos militares) foram recolhidos pela Marinha, numa série de operações clandestinas nas costas do Senegal, Gâmbia e Serra Leoa, até à fronteira com a Libéria. Pequenos grupos-tarefa compostos de lanchas de fiscalização e de desembarque faziam o rendez-vous com os grupos de elementos a recolher em praias seleccionadas, em datas e horas combinadas, sempre durante a noite. Através da estrutura do FLNG estavam também combinados o número de homens a embarcar em cada operação, e os códigos rádio e luminosos a serem trocados entre os navios e os grupos nas praias. Os elementos eram recolhidos com botes pneumáticos para bordo dos pequenos e discretos navios portugueses, tendo sido a LFG Orion o navio mais usado nestas operações. Assim foram recolhidos duzentos elementos, que formariam a força de desembarque do Front, e concentrados na ilha de Soga, na Guiné Portuguesa. Nesta ilha discreta foram construídos os aquartelamentos e o campo de treino, onde os oposicionistas foram treinados por oficiais portugueses, entre os quais os melhores instrutores disponíveis na Guiné. Foi uma tarefa árdua porque foi necessário ultrapassar as rivalidades tribais e religiosas entre os oposicionistas guineenses. Mas com treino intensivo e disciplina rigorosa foi possível tornar a força do FLNG numa unidade coesa.

Foi feito um vasto trabalho de recolha de informações sobre a Guiné-Conakry (constatando-se que a Intelligence que existia até então era manifestamente insuficiente), recorrendo às mais variadas fontes, desde guineenses exilados a antigos membros do PAIGC, além de notícias e publicações. Foi feita uma maquete da zona portuária de Conakry mas ainda assim faltava informação a nível operacional e táctico. Obter fontes locais num país vivendo sob um regime como o de Sékou Touré não era fácil. Também foi obtida informação fornecida pelos serviços secretos franceses e da RFA.

Sendo elevada a probabilidade de vitória do golpe, foi elaborado o programa político do FLNG em conjunto com três delegados deste movimento, em Bissau. Os membros do futuro governo da Guiné-Conakry foram seleccionados e preparados os comunicados a serem difundidos pela rádio.

Do lado das forças portuguesas, foram feitos os planos do ataque e escolhidas as unidades que participariam na operação. Era evidente que os combatentes do FLNG, por muito intensivo que tivesse sido o seu treino, dificilmente estariam à altura de executar operações especiais e enfrentar as unidades mais capazes da Guiné-Conakry em grande inferioridade numérica. Assim, alguns objectivos mais difíceis e que seriam cruciais para o sucesso do golpe do Front seriam atacados por tropas portuguesas. O mais importante deles todos era a eliminação física de Sékou Touré.

Mas esta não seria nem uma operação anfíbia clássica, nem um simples raide de comandos. Também não seria uma invasão ao estilo da dos exilados cubanos em 1961, conhecida pela Baía dos Porcos, porque o país que a apoiava também iria participar com forças suas, e o objectivo seria a própria capital do país. A solução era uma operação anfíbia, assente num número limitado de pequenos navios, na qual seria efectuado um grande número de raides de comandos em simultâneo, cada equipa atingindo um objectivo específico. E uma vez que as forças portuguesas actuariam dissimuladas e como se fossem forças exiladas, teriam de operar com as mesmas limitações de um vulgar grupo armado. Isto significava que não haveria infiltrações por helicóptero, nem apoio aéreo, nem uso de qualquer armamento sofisticado. Tudo teria de ser feito com lanchas, barcos pneumáticos e armamento ligeiro. Não havia precedente de uma operação com esta combinação de objectivos e limitações auto-impostas.

A LDG (Lancha de Desembarque Grande) Montante, um dos navios participantes na Operação Mar Verde, aqui navegando num rio da Guiné

Como uma das condições para o sucesso da operação era que não houvessem vestígios da participação de forças portuguesas ou sequer do envolvimento de Portugal no golpe, foram tomadas uma série de medidas para esse fim. Tantos os combatentes portugueses como os do FLNG usariam o mesmo uniforme e o mesmo armamento, que teria de ser de uso corrente em África. Por outras palavras, de modelo soviético. Para se comprar o armamento sem que o destino final fosse revelado, recorreu-se ao mercado paralelo, através da firma Norte Importadora Lda, propriedade de José João Zoio, conhecido cavaleiro tauromáquico e também comerciante de armas. De facto, esta empresa foi uma das envolvidas numa das facetas mais irónicas da guerra travada em África: a compra de armas a fabricantes do Bloco Comunista. Portugal, por razões da existência de um embargo internacional e pelas limitações da sua própria indústria, recorria com alguma frequência a fabricantes do outro lado da Cortina de Ferro, que não olhavam a aspectos ideológicos e, pelo contrário, se mostravam abertos a vender os seus variados produtos sem fazer grandes perguntas e a preços convidativos. Um dos seus produtos mais populares eram os lança-foguetes RPG, que não tinham equivalente na indústria ocidental. E uma vez que esta empresa não vendia armas apenas às Forças Armadas portuguesas, ninguém poderia prever qual o seu destino. Zoio deslocou-se à Bulgária, em cuja capital encomendou o lote de armas destinadas à operação na Guiné-Conakry, de que se destacavam espingardas de assalto AK-47 (Kalashnikov), metralhadoras ligeiras RPD (Degtyarev) e lança-foguetes RPG-2. As armas foram fabricadas sob a especificação de que nenhuma teria número de fabrico nem qualquer identificação do fabricante ou país de origem. Os fabricantes búlgaros forneceram as armas prontamente.

Em Lisboa, as Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (OGFE) conceberam e fabricaram um lote especial de uniformes, muito diferentes dos portugueses. Também foram feitos chapéus de um modelo tropical muito semelhante ao de origem soviética. Dos chapéus às botas, nada poderia indicar a sua origem portuguesa. Para completar o disfarce, os militares portugueses de raça branca tomariam parte na operação com o corpo pintado de forma a parecerem negros.

Finalmente, no fim de Outubro de 1970, os preparativos entraram na fase final, com a escolha das equipas e sua atribuição aos objectivos seleccionados e ordenados por grau de prioridade. Foram identificados 52 objectivos necessários à paralisação da cidade de Conakry. Mas foi decidido que o desembarque teria lugar numa noite de Sábado para Domingo, altura em que a maioria dos militares e para-militares estariam de licença e os serviços públicos desactivados. Em consequência, o número de objectivos foi reduzido a 25. A cada objectivo foi atribuída uma equipa, variável em número e com o armamento necessário a cada caso.

A ordem das operações passava primeiro pelo domínio no mar, depois em terra e, por fim, no ar. Para o domínio do mar (e resultados políticos) era condição sine qua non que nenhum navio de guerra soviético estivesse nesse momento em Conakry.

Os grandes objectivos da operação eram:

- Destruir as lanchas no porto

- Libertar os prisioneiros de guerra portugueses

- Destruir os caças Mig

- Atacar e destruir o quartel-general do PAIGC (havendo a hipótese de capturar Amílcar Cabral)

- Proporcionar o desembarque do FLNG, e auxiliar a sua tomada do poder

Nome de código: Operação Mar Verde

No princípio de Novembro é espalhada a informação de que está a ser preparada uma grande operação na ilha de Como. Discretamente, começa a concentração de forças, feita de forma discreta, na ilha de Soga, onde estavam baseados os combatentes do FLNG. Dadas as características da operação, as forças portuguesas que participam são compostas maioritariamente por militares africanos: o Destacamento de Fuzileiros Especiais 21 (Africano), a Companhia de Comandos Africanos e um pequeno número de Páraquedistas.

A 14 de Novembro, o comandante Alpoim Calvão é enviado pelo general Spínola a Lisboa para descrever os planos a Marcello Caetano, que dá luz verde à operação a 17.

A OPERAÇÃO MAR VERDE

Parte 3 – A operação

17 de Novembro. No mesmo dia em que Lisboa dá a luz verde, o general Spínola dá conhecimento aos Comandantes Chefes Adjuntos da ordem de operações para a Operação Mar Verde. O Exército reforça e põe de alerta as suas unidades junto da fronteira com a Guiné-Conakry. Por seu lado, a Força Aérea prepara missões de reconhecimento e apoio ao grupo de navios envolvidos, e missões de bombardeamento de objectivos do PAIGC na Guiné-Conakry, que seriam atacados caso o golpe tivesse êxito.

A 18, a Força Aérea inicia as missões de reconhecimento das águas da Guiné-Conakry, do porto da capital e suas aproximações, com um avião de patrulha marítima Lockheed P2-V5 Neptune, de forma a detectar movimentos de navios de guerra, mercantes e concentrações de navios de pesca.

Às 09h00 desse dia a missão das forças na ilha de Soga é comunicada oralmente aos comandantes: a operação não é na ilha de Como mas sim um desembarque na capital da Guiné Conakry. Confirma-se que o sigilo que envolveu a preparação da operação foi mantido: nos briefings finais, dois oficiais, um do Exército e outro da Marinha, mostrar-se-iam muito cépticos quanto à sua execução. O do Exército recusou-se a participar e foi-lhe dada voz de prisão e levado para Bissau de helicóptero. Mas Spínola e Calvão acabariam por convencê-lo, e regressaria à ilha de Soga.

A 19, Calvão regressa de Lisboa e parte logo para a ilha onde se fazem os últimos preparativos. Também nesse dia, a Força Aérea informa de que não existem navios de guerra nas águas da Guiné Conakry, e que um P2-V5 fez escuta das comunicações da torre de controle do aeroporto de Conakry, não se registando tráfego de aviões militares.

Aos homens da força de desembarque, portugueses e opositores guineenses, são distribuídas as novas armas e uniformes. Os navios envolvidos são pintados para se dissimularem todos os sinais que os indiquem como portugueses. Até as bóias de salvação. São quatro LFGs (da classe Argos), Cassiopeia, Dragão, Hidra e Orion (navio-chefe), e duas LDGs , a Bombarda (da classe do seu nome) e a Montante (da classe Alfange). Compõem a força-tarefa TG27-2.

LFG (Lancha de Fiscalização Grande) Orion, da classe Argos, num rio da Guiné

Deslocamento: 210 toneladas; Dimensões (em metros): 41,7 x 6,7 x 2,1; Armamento: 2 canhões Bofors 40mm/70, metralhadoras 7,62mm e granadas de dilagrama; Propulsão: 2 motores diesel Maybach Tunel MD 440/12 accionando dois hélices, totalizando 2400cv; Velocidade: 17,3 nós; Autonomia: 1660 milhas náuticas; Tripulação: 24. Os navios desta classe usados na Guiné eram parcialmente blindados.

LDG Montante, da classe Alfange, na Guiné

Deslocamento: 480 toneladas; Dimensões, em metros: 56,54 x 11,8 x 1,27; Armamento: 2 canhões Bofors 40mm/70, metralhadoras 7,62mm e granadas de dilagrama; Capacidade de Transporte: 270 toneladas; Propulsão: 2 motores diesel Maybach-Mercedes Benz accionando dois hélices, totalizando 910cv; Velocidade: 10,3 nós; Autonomia: 2860 milhas náuticas; Tripulação: 20. A Bombarda é muito semelhante, com canhões Oerlikon 20mm em vez dos Bofors 40mm.

As equipas são distribuídas pelos navios:

Nas LFGs Dragão e Cassiopeia são embarcadas as equipas que irão atacar os objectivos do PAIGC, eliminar Sékou Touré na sua residência, a Villa Silly, e o campo de milícias do PDG. São formadas por fuzileiros reforçados por comandos.

Na LDG Bombarda segue parte dos FLNG, enquadrados por Comandos. São as equipas que atacarão o Palácio Presidencial, Ministério do Interior, a comando da Gendarmerie, residências dos dirigentes Lansana Beavogui e Sayfoulhah Djallo, quartel da Gendarmerie, quartel dos conselheiros militares cubanos, a rádio de Boulbinet e o istmo que divide as duas partes da cidade, impedindo a passagem de reforços vindos de outras instalações militares.

Na LDG Montante segue o restante da força do FLNG, com as equipas destinadas a atacar a central eléctrica, o estado-maior da forças armadas da Guiné Conakry (Campo Samory) e a Guarda Republicana.

Na LFG Hidra segue a equipa que irá destruir os Mig baseados no aeroporto de Conakry.

Na LFG Orion está o comando da operação e a equipa que atacará as lanchas da Guiné Conakry e do PAIGC.

A força de desembarque totaliza 400 homens.

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