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Angola (Luanda) quando era uma província de Portugal


Uma cerveja nunca vinha só: trazia pelo menos um prato de camarões grátis a acompanhar

O pai era delegado da TAP em Lourenço Marques e isso dava-lhe acesso à elite. Instalou-se com a mulher e os filhos no Sommerschield, um dos bairros mais chiques da cidade. "Havia um meio snobe muito restrito. Uns eram banqueiros, outros moçambicanos brancos ou negros que subiam na vida." Apesar de a sociedade ser mais fechada do que a angolana, os Frade foram bem recebidos. Relacionavam-se, entre outros, com Jorge Jardim, pai das irmãs Jardim, e tinham acesso às festas no Palácio quando Baltasar Rebelo de Sousa foi governador. Para estas famílias, o Grémio Civil, o clube mais exclusivo da cidade, era um ponto de encontro. "Ia-se à piscina e jogava-se canasta e bridge a dinheiro. Aos sábados à noite havia póquer. Havia gente a perder muito." A maior parte dos jovens preferia fazer remo e vela no Clube Naval, natação na Associação dos Velhos Colonos, e jogar râguebi, basquetebol ou futebol no Desportivo, no Sporting ou no Benfica de Lourenço Marques. Muitos iniciavam-se na caça submarina e pescavam garoupas de grande porte. Para apanhar lagostas só era preciso jeito, tal era a abundância no mar. A relação entre os rapazes e as raparigas era muito menos controlada do que na Metrópole. Se alguns liceus, como o Salazar, em Lourenço Marques, e o Diogo Cão, em Sá da Bandeira (actual Lubango), Angola, tinham uma ala para eles e outra para elas, os pais não se opunham ao convívio entre os dois sexos. Era normal irem juntos à praia, ao cinema e a festas em casa uns dos outros. "A gente nova ficava por sua conta. Os pais ou não apareciam ou davam uma volta e desapareciam", conta à SÁBADO Zezinha van Zeller, 55 anos, que cresceu em Luanda. Os namoros eram muito mais liberais. O escuro do cinema ajudava a esconder uns beijos. No Miramar, ao ar livre, no Avis, no Restauração, onde era permitido fumar, no Tivoli e no São Paulo, os filmes passavam com pouco atraso em relação à Metrópole. "Nas festas e nas praias era um enrolanço total. Dançávamos slows, muito apertados. Muitas raparigas faziam sexo antes de casar. Algumas ficavam à espera de bebé e outras faziam abortos." Tanto ela como as irmãs sempre se arranjaram muito: maquilhavam-se, usavam minissaias e decotes. Mas havia limites: "Um dia apareci com um biquíni que tinha comprado em Lisboa e anunciei ao meu pai que ia para a praia assim. Levei uma sova mas fui na mesma. Depois fiquei de castigo." O confronto repetiu-se quando o pai de Zezinha descobriu que ela tinha comprado o disco Je T’Aime Moi non plus, de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. "Não fez mais nada: deu-me uma sova monumental e partiu o disco à minha frente." Os gemidos da cantora eram demasiado lascivos para os ouvidos de uma rapariga de respeito. Os maiores êxitos internacionais ouviam-se nas 17 rádios de Angola com muito pouco atraso em relação ao lançamento. "Os discos da [editora norte-americana] Capitol Records chegavam poucos dias depois de saírem. Ouvia-se sobretudo música anglo-saxónica e francesa. Também iam algumas coisas de Lisboa", recorda Emídio Rangel, então jornalista da Rádio Comercial de Angola, em Sá da Bandeira [morreu a 13 de Agosto de 2014]. A cidade onde a sua família se estabelecera há várias gerações era conhecida pela vida estudantil. Durante muitos anos, só havia dois liceus em todo o território: o Salvador Correia de Sá, em Luanda, e o Diogo Cão, ali. E isso fazia chegar, todos os anos, alunos de outras zonas. "Além do liceu, havia uma escola de enfermagem e uma escola de regentes agrícolas. Era frequente circular e ver passar estudantes de capa e batina." A maioria dos miúdos que frequentavam o liceu ainda era branca, mas já havia alguns negros. Andavam nas mesmas turmas e eram tratados de forma igualitária pelos professores, conhecidos pela exigência. Rangel, um dos veteranos, pertencia ao Reino imaginário de Maconge, com Rei, vice-rei, bispo, duques, sobas, cavaleiros e barões. Os maconginos reúnem-se até hoje. Kundy Paihama, actual ministro dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria de Angola, é conde do Hombo. A associação académica promovia actividades tão diferentes como futebol, hóquei em patins e teatro. "O grupo tinha uma intensidade de trabalho enorme. Fiz Um Pedido de Casamento, de Tchekhov,e Todo o Mundo e Ninguém, de Gil Vicente. Ganhámos um festival provincial de teatro", conta o antigo director- geral da SIC e da RTP. "Lembro-me de ter aparecido a editora Imbondeiro, que publicava livros proibidos pela censura. A liberdade era muito mais ampla em Angola. A PIDE estava centrada nos movimentos independentistas e nos assuntos relacionados com a guerra", diz Rangel. O conflito que se iniciou a 15 de Março de 1961,no Norte do território, reflectia-se mais na Metrópole do que nos portugueses que viviam no Ultramar. Na Europa, milhares de jovens eram recrutados para combater os movimentos independentistas. Muitos morriam ou sofriam ferimentos graves que deixaram sequelas para sempre. Em Angola e Moçambique, a vida corria sem sobressaltos e a economia continuava a desenvolver-se. Um ano depois do início da guerra colonial, António Cardoso e Cunha partiu para Sá da Bandeira e foi ajudar o sogro nos negócios. Venâncio Guimarães Sobrinho tinha um império na cidade e precisava de um homem de confiança para o desenvolver. Escolheu o genro. "Só quando lá cheguei percebi o real valor dele. Levou-me ao escritório, tirou um papel da gaveta e disse-me: ‘Leia isto.’ Era uma procuração que me passava plenos poderes sobre todo o património. Ele não jogava só uma cartada: jogava tudo", diz à SÁBADO Cardoso e Cunha, que foi ministro da Agricultura e Pescas dos Governos de Sá Carneiro e Balsemão. Venâncio tratou-o sempre por engenheiro. Ele chamava ao sogro comandante. António instalou-se no sétimo e último piso do edifício construído para albergar a sede da firma. Do terraço da casa tinha uma vista deslumbrante. Mas a maior vantagem era mesmo morar, literalmente, em cima do trabalho. Chegava a descer ao escritório, no segundo andar, de pijama. Depois subia para tomar o pequeno-almoço e regressava. Havia empresas de todos os ramos para administrar: da agricultura à pecuária, passando pela lucrativa área das representações, um jornal e, mais tarde, uma rádio. "As nossas actividades cresciam em volume e superfície. Eu tinha ao meu dispor os meios necessários para trabalhar: um rádio para as comunicações porque as linhas telefónicas eram nulas e um avião Piper bimotor para as deslocações longas." Só viajava em trabalho e dedicava muito pouco tempo ao lazer. E isso era uma excepção em África. Os portugueses habituaram-se a um convívio constante em casa uns dos outros. As festas nem precisavam de ser convocadas. "Combinava-se e ia-se de assalto a casa de alguém, sobretudo no Carnaval, no Santo António e no São João", lembra Emídio Rangel. Às vezes apareciam 20 ou 30 pessoas de uma vez e ninguém estranhava. Uns traziam comida, outros bebida. Falavam, cantavam e dançavam ao som de discos de vinil até de madrugada. No dia seguinte iam trabalhar. "Trabalhava-se muito, mas tínhamos a preocupação de gozar a vida." Se na metrópole só um pequeno grupo de famílias tinha criados em casa, no Ultramar eram muito raras as que os dispensavam. "Quase toda a gente tinha um cuca [cozinheiro], um mainato, que cuidava da roupa, e um pequenino para os ajudar e tomar conta dos miúdos. Nós ainda tínhamos um jardineiro e chegou a haver uma criada branca", lembra José Quental, que vivia no bairro da Polana, próximo do Palácio da Ponta Vermelha, residência oficial do governador, e hoje do Presidente da República. Isso, sim, era um privilégio em Lourenço Marques, onde o pessoal da casa era sempre negro. A relação entre brancos e pretos nunca era de igual para igual, mesmo na cidade. Nas cantinas (lojas no mato) e nas fazendas, os maus-tratos aconteciam com frequência. Em ambiente urbano era mais raro ver um patrão bater num empregado. "Nós não éramos racistas como os sul-africanos. Eu só batia nos empregados que roubavam gasóleo e outras coisas do armazém do meu pai [Armazéns Guerreiro Quental, os maiores da cidade].Quando os apanhava, perguntava-lhes: ‘Queres mezinha ou queres ir para a rua?’ E eles escolhiam sempre mezinha (pancada). Davam-se bem comigo." Os negros estavam acostumados a castigos deste tipo. E só se revoltavam quando achavam a sova injusta. De resto, José Quental diz que tinha bons amigos pretos. "O meu pai comprou-me um barco quando eu era miúdo e eu levava amigos negros ao Clube Naval para passearem comigo. Ele dizia-me: ‘Levaste o teu amigo preto? Já sabes que eles lá não gostam disso.’ E eu continuava a fazer a mesma coisa." A separação total das raças nunca foi como a da África do Sul. "Quando cheguei a Moçambique, em 1947, os negros só podiam andar no banco de trás do autocarro. Mas depois de Adriano Moreira ter sido ministro do Ultramar [e ter acabado, em 1961, como Estatuto do Indigenato, que legalizava a discriminação dos negros pelos brancos], a segregação terminou", conta à SÁBADO Daniel Perdigão, 83 anos, antigo funcionário dos Correios de Lourenço Marques. Ainda assim, a cidade do asfalto estava reservada aos brancos e a algumas famílias negras que iam subindo na escala social. Era o caso dos Van Dunen e dos Pinto de Andrade em Luanda, por exemplo. A maioria, porém, vivia nos musseques, às portas das cidades. Em Angola, por norma, estes eram bairros de casas com telhado de zinco; em Moçambique, de palhotas muito juntas. E até aqui havia oportunidades de negócio para os brancos. Os fubeiros, como eram conhecidos estes comerciantes, tinham lojas de tudo: da alimentação a roupa. Havia ainda armazéns com peças para automóveis e boas carpintarias onde se mandava fazer móveis por encomenda. O pai de Zezinha van Zeller, António Costa Macedo, desenhou várias peças para a residência da família no bairro de Alvalade (Luanda). "A casa era enorme, de luxo. Tinha cave, rés-do-chão e primeiro andar e ficava colada à de uma tia minha", diz. No quintal houve durante um tempo duas macacas de estimação. Uma delas, chamada Chica, fugiu da corrente que aprendia a uma árvore e foi apanhada numa clínica, na rua de trás, na cama de um doente. "Quando havia festas, fazia-se um bufê e servia-se com os melhores serviços e pratos. Punham-se mesas nos terraços, varandas e jardins." O menu podia até variar muito, mas nunca saía da comida tradicional portuguesa. À mesa, os colonos não podiam ser mais conservadores. No Natal comia-se bacalhau como na Metrópole. E nem o calor que fazia em África os desencorajava de comer cozido à portuguesa e feijoada. Só dois ou três pratos locais passaram a ser feitos em casas de brancos: muamba, em Angola; caril de camarão e frango à cafreal, em Moçambique.

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