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VIDEO DEDICADO A TODAS AS "MÃES" DOS COMBATENTES NO ULTRAMAR.Agradecia perdessem alguns mi


Em busca do pai tuga

No tempo da guerra colonial havia quem lhes chamasse "portugueses suaves", agora, há entre os ex-combatentes quem prefira "filhos do vento". Mas os filhos de militares portugueses com mulheres guineenses não conhecem esse nome poético. Na Guiné foram apelidados de "restos de tuga".

Catarina Gomes Texto,

Pai, está lá! Oh pai, fiquei muito contente de termos oportunidade de falar hoje. Estou vivo e a minha mãe também. Olha, pai, não se sinta mal, é percurso de vida, não há ressentimento. Olha, pai, não tenha receio, fica tranquilo, eu sou homem, estou a trabalhar. Muito obrigada por o ter conhecido, pai. Que Deus o abençoe com a vida que tem aí."

Fernando Mota, 40 anos, não sabe há quantos anos anda às voltas com este diálogo na cabeça, às vezes muda-lhe pequenos detalhes, junta-lhe palavras, tira-lhe outras, esta é a versão mais recente. O diálogo é, na verdade, um monólogo imaginário, nunca passou disso, porque na sua cabeça é como se ele pudesse dizê-lo assim, tal e qual o pensou, sem interrupções, com o tom doce que está a usar agora. Fernando é professor de História e Geografia no Liceu Jorge Ampa, em Bissau.

Fernando Mota sonha muito ouvir a voz do pai ao telefone, mas nunca imaginou quais seriam mesmo as palavras que diria se conseguisse descobrir o seu número de telefone lá longe, em Portugal, e ele respondesse do outro lado da linha, como aconteceu com alguns filhos de ex-militares. Prefere agarrar-se a este monólogo perfeito, como se estivesse resignado com a possibilidade de nunca vir a realizar-se além da sua imaginação, pacificado com a ideia de nunca vir a ouvir a voz desse soldado português que esteve na Guiné há 42 anos e que é seu pai.

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Se Fernando Hedgar da Silva conhecesse Fernando Mota, talvez oachassedemasiado sentimental. Ele imaginou-se mesmo cara a cara com o pai, só que, na cena em causa, o pai estendia-lhe a mão para lhe dar um passou-bem e Fernando espetava-lhe um murro. Houve uma altura em que só sentia raiva pelo pai português, mais ainda quando teve quase a certeza de que não o ia conseguir descobrir. Houve um tempo em que pensava que o pai se chamava furriel. Foi um ex-militar que lhe explicou que "furriel não é nome de pessoa, é posto. "Não tens nome, não tens nada, não te posso ajudar". Tenho menos de um por cento de hipóteses de o encontrar". No tempo em que só tinha rancor contra o furriel sem nome, pensou criar uma associação com uma designação que resumia esse sentimento, Associação de Filhos Abandonados pelos Colonialistas Portugueses. Fernando, de 45 anos, camionista, braço tatuado com o seu diminutivo, Dinho, serenou. Hoje, escolheria outro nome para uma associação que continua a sonhar criar com um objectivo: "Quero mostrar aos portugueses que nós existimos, que fomos abandonados, que somos muitos" e, quem sabe, diz a medo, talvez "encontrar o meu pai" e deixar de se sentir "meia-pessoa".

Num dos mais populares blogues de ex-combatentes da guerra colonial, chamado Luís Graça & Camaradas da Guiné, alguém lembra que, na altura, lhes chamavam "portugueses suaves", a esses meninos que nasciam junto a quartéis portugueses, sem pai conhecido, mais claros do que os outros e em que se sabia, por norma, quem era o militar que tinha estado com a mãe, sem que isso fosse dito em voz alta e mesmo que o próprio nunca o admitisse.

Quero mostrar aos portugueses que nós existimos, que fomos abandonados, que somos muitos

Fernando Hedgar da Silva

Em 11 anos de guerra, que na Guiné começou em 1963, até à independência, em 1974, passaram por um país com o tamanho aproximado do Alentejo cerca de 200 mil homens portugueses. À data, a população da Guiné rondava o meio milhão de habitantes, resume Luís Graça, o criador e editor do blogue.

No blogue, José Saúde, um ex-furriel na Guiné, decidiu começar a chamá-los de "filhos do vento", porque parecia que não eram "filhos de ninguém", crianças com mãe guineense, que ficou, e sem pai conhecido, que, terminada a comissão, regressava a Portugal. "O assunto é melindroso" entre os ex-combatentes, "tabu". Mas mesmo assim, um dia ele lançou o desafio no blogue, era preciso falar do tema, que depois tomou a forma de uma pergunta - "Camaradas: quantas crianças mestiças, cuja paternidade era imputada a militares, "tugas" [como eram conhecidos os portugueses], vocês conheceram, nos anos e nos sítios por onde andaram na Guiné? Vamos arranjar material para meia dúzia de posts." Foi uma trintena de posts, num blogue que é seguido por cerca de 500 pessoas.

Foram poucos os que responderam directamente à pergunta: "Quantos de nós, na solidão da mata, na angústia e incerteza de como e se no dia seguinte estaríamos vivos, não cometeram actos que deram origem a estes casos", escreveu um ex-militar; um outro limitou-se a citar o Poema da Malta das Naus, de António Gedeão: "Tremi no escuro da selva alambique de suores/ Estendi na areia e na relva/mulheres de todas as cores." Houve também quem ironizasse "pais de multidões mestiças? Ena pá, o que para aí vai!" No mesmo sentido, houve quem respondesse tão-somente que "são mais as vozes do que as nozes". Os que responderam, mesmo, à pergunta lembram ter conhecido na sua comissão um, dois "filhos do vento", no máximo, alguns juntaram aos posts fotos destes meninos clarinhos que destoavam dos outros e que lhes ficaram para sempre na memória.

Dauda era louro e de olhos azuis. O capitão José Neto tirou-lhe uma fotografia a brincar numa poça ao lado de outros meninos da aldeia - parece um anúncio da Benetton, mas a preto e branco, com a claridade de Dauda a contrastar com o escuro dos que brincavam com ele. Dauda era filho de um capitão português da companhia que José Neto tinha ido render. Todos os homens sabiam, só o próprio fingia ignorá-lo, contou no blogue o capitão José Neto, que morreu de cancro em 2007, dizendo ter desenvolvido raiva ao pai omisso. E, por isso, passou a chamar a criança abandonada pelo apelido que devia ser o seu, caso o pai o tivesse perfilhado. Ordenou que todos passassem a chamá-lo Vieira (apelido fictício).

Quantos de nós, na solidão da mata, na angústia e incerteza de como e se no dia seguinte estaríamos vivos, não cometeram actos que deram origem a estes casos

Ex-militar português

Afeiçoou-se ao menino claro, mais ainda quando um dia lhe salvou a vida. Tinha havido um bombardeamento e ele foi tirá-lo da casa minutos antes de explodir uma granada. Só depois de o marido morrer é que a mulher, Júlia Neto, soube porque é que não se podia tocar naquele estilhaço que estava guardado no móvel do escritório da casa como se fosse um tesouro. Era um bocado da granada que podia ter matado o Vieira se o capitão Neto não o tivesse salvado.

O capitão José Neto nunca mais voltou à Guiné mas, em casa, mulher e filhas sempre ouviram falar daquele "filho adoptivo". As suas filhas sempre souberam que tinham "um irmão" na Guiné, conta Júlia Neto.

Quando um dia, cerca de 40 anos depois da guerra, o capitão Neto voltou a estabelecer contactos com a Guiné - através de uma organização não-governamental gerida por um guineense de origem portuguesa que quis reconstruir um antigo quartel português, a Acção para o Desenvolvimento -, fez um pedido ao seu presidente, Carlos Silva: "Por favor, descobre-me o Vieira." Foi o que fez, mas Vieira tinha morrido um mês antes, com menos de 40 anos, e o capitão Neto morreu sem nunca reencontrar o menino claro.

Depois de o marido morrer, Júlia Neto foi à Guiné e fez questão de ir conhecer a mulher de Vieira e as três filhas. Sentiu que, se não tinha podido conhecer o "menino", tinha pelo menos de conhecer a sua família. O pai de Vieira ainda é vivo, reformou-se há pouco tempo, conta.

Ao tentar reconstituir a história do rapaz, Carlos Silva soube que, na altura, o pai de Dauda foi encostado à parede. Quando a mulher descobriu que ele tinha tido um filho de uma guineense, deu-lhe a escolher, ou ele (o Dauda) ou ela (a mulher). "Ele, claro, optou pela mulher e largou a criança." E as três meninas, Paula, Fátima e Fatu da Fonseca, nunca souberam nada desse seu avô português, só conhecem Júlia, a mulher de um capitão que volta não volta lhes manda presentes. Dauda, ou Vieira, morreu filho do vento.

Não foi esse o nome por que foram conhecidos toda uma vida na Guiné. Filhos do vento até soaria bem, parece poético. Sem se conhecerem uns aos outros, todos eles foram tratados por "restos de tuga".

Parecem autênticas histórias de Gata Borralheira. Na história de Óscar Albuquerque, há uma casa, com irmãos, uma mãe e um pai que sabe que um dos filhos, o menos negro, não é seu. O suposto pai, que na verdade é padrasto, sabe que aquele é um filho da sua mulher com outro homem, um branco e, por isso, Óscar acaba por ser o mais mal tratado da casa.

Na Guiné, há uma escala de claros-escuros que pode passar despercebida a quem está de fora, mas que é perceptível a um guineense. O que chamam "um guineense-guineense" é mais escuro, em todos os que são claros, mais ou menos, se percebe que houve mistura com brancos. No seu caso e noutros semelhantes, por terem nascido naquele período, durante a guerra ou logo a seguir, em zonas de quartéis de portugueses, não havia forma de esconder que eram "filhos de tuga", como também eram conhecidos. Mesmo que o quisessem, não haveria como: "Não há maneira de esconder a pele, a claridade não engana", diz José Carlos Martins, de 48 anos.

Era essa a primeira pista. Desde crianças que olhavam para a sua cor e se confrontavam com a sua origem. Hoje já são adultos, andam na casa dos 40, 50 anos, mas quando contam as suas histórias é como se voltassem a ser meninos e choram, choram muito, como faziam quando em casa sentiam que eram diferentes.

Em casa de Fátima Cruz, o ser diferente vinha à baila de cada vez que a mãe pedia às filhas para fazerem tarefas: buscar água, lenha - "então, e a branca, não vai?", acabava por dizer uma das irmãs. Foi maltratada pelo padrasto e pela mãe, que sente que a culpava. Ela era o fardo levado para uma nova união com um guineense, que em Fátima tinha um lembrete demasiado evidente para si, e para os outros, de que a sua mãe tinha estado com um branco, no seu caso, que até tinha vivido com ele dois anos.

"Se falar com a minha mãe, ela vai dizer que nunca me tratou de forma diferente." É verdade. Sanu Mané tinha 15 anos quando começou a ser lavadeira do pai de Fátima - hoje é vendedora e presidente de uma associação comunitária contra a violência de género - e diz que nunca tratou a filha pior do que as irmãs, apesar de ter sofrido tanto com aquela gravidez, apesar de ter passado muito por causa daquela "filha branca". Na sua família, mal se soube que ela estava grávida do alferes português, tentaram que abortasse. Em casa, davam-lhe todos os dias um remédio feito de raízes dentro de uma panela. Ela fingia engoli-lo, mas conseguia deitá-lo fora às escondidas. A gravidez começou a ser visível e estava ela de poucos meses quando o tio materno começou a chicoteá-la na barriga, para que "o bebé do branco" não nascesse.

Sanu Mané tinha 15 anos quando começou a ser lavadeira de um militar português de quem engravidou

Fátima Cruz ouviu estas histórias todas, estas e a de que ainda foi o pai quem lhe escolheu o nome, que era o da mãe dele, Fátima. E que ele queria ficar com a mãe, mas a família não quis que a filha ficasse com um branco, e que depois de voltar a Portugal até lhe mandava encomendas com leite, roupa, jóias, mas que o tio materno as recebia e tratava de queimar tudo, contaria bastante mais tarde o homem dos correios que fazia as entregas.

Fátima Cruz tem 36 anos, está bem na vida, tem três filhos, vende roupa, e ainda hoje pensa que só aquele homem dos correios a poderia reunir ao seu pai. Ao menos se o homem dos correios não tivesse morrido, talvez ainda fosse possível recuperar a morada, saber-lhe o paradeiro, encontrá-lo. Se o homem dos correios não tivesse morrido...

Nas histórias destes filhos, há quase sempre pessoas que desapareceram, externas à família, e que só elas teriam podido ajudá-los. Porque à pessoa que mais sabia não se podia perguntar.

"Não se faz uma pergunta dessas a uma mãe. É um segredo das mães", e Óscar Albuquerque nem agora, com 40 anos, chega a formulá-la, assim, com todas as letras. Mas seria algo como: "Mãe, afinal quem é o meu pai?" O mais longe que ousou foi contornar a questão, delicadamente: "Mãe, pode um homem ter dois pais?" Não teve resposta.

Teve de ser uma vizinha que, uma vez, o chamou da rua, estava ele a jogar à bola, teria uns 11 anos. "Anda cá, anda cá." Dentro da casa da senhora, resguardados dos olhares, ouviu o que sempre tinha desconfiado, mas era demasiado pequeno para perceber: "Aquele senhor não é teu pai, tu és filho de um tropa português. Aqui na aldeia toda a gente conhecia o teu pai."

Como muitos filhos de portugueses, quando a mãe engravidou, a família tratou de a casar à pressa com alguém escolhido por si. Mas quando a criança nasceu, percebia-se que não era igual aos outros. Quando já era adulto, a mãe contou-lhe um dia - "só para me magoar", recorda agora - que mal o pai do seu padrasto viu o bebé Óscar, disse ao filho: "Este não é teu filho, é filho de um branco."

Uma vizinha contou-me ‘aquele senhor [o padrasto] não é teu pai, tu és filho de um tropa português. Aqui na aldeia toda a gente conhecia o teu pai’.

Óscar Albuquerque

Ana Sanconha, vendedora, de 40 anos, lembra-se bem do sítio onde a mãe lhe contou. Iam as duas a percorrer a estrada de terra batida vermelha marginada por cajueiros que liga Iemberém a Cacine, no Sul da Guiné, a mesma que agora percorreu a pé durante cinco horas para nos vir contar a sua história. "Foi aqui, foi aqui mesmo", sentaram-se as duas e aí ela perguntou-lhe: "Mamã, diz-me lá quem era o meu pai. Chorou, chorou e depois contou. Chamava-se António da Silva." Tinha 25 anos quando soube.

A mãe de Califa Tcham só contou porque sabia que não tardava iria morrer. Foi quando ela estava já muito doente que soube, ou melhor, que confirmou que o pai era português, porque as más-línguas da aldeia sempre a tinham chamado "filha do capitão". Com a mãe, não ficou a saber mais, "morreu, não terminou de explicar". Foi assim que aos 29 anos, morta a mãe com o seu segredo, se pôs a fazer perguntas aos ex-militares guineenses que lutaram com o pai. O mais que conseguiu foi juntar o apelido ao posto, Califa Tcham era afinal filha de um "capitão Trindade".

Perguntar às mães sobre as suas origens significa voltar a um passado traumático que se quer esquecido, a envolvimentos clandestinos que envergonham. Às vezes fora do casamento, quando os maridos estavam ausentesa lutar no mato, outras vezes a relações de quando ainda eram meninas.

Maria Geralda Cassamá, 66 anos, hoje professora primária em Quinhamel, perto de Bissau, só conta como tudo aconteceu porque o filho, Erasmo da Fonseca, engenheiro mecânico, lhe pediu muito. "Não há vergonha, tens de contar tudo. Não há lágrimas, a culpa não é tua."

Como é que se conta a um filho que se perdeu a virgindade com aquela primeira relação? Que o furriel português, que conheceu em casa de familiares seus, foi atrás dela até Bissau, onde estudava, e um dia a convidou a ir conhecer por dentro o edifício da Cruz Vermelha? E afinal a levou para um quarto, fechou a porta à chave e insistiu muito, muito e ela acabou por aceitar? Tinha 18 anos. "Eu era virgem, fiquei como um cadáver na cama, ele foi tomar banho e foi-se embora." Só voltaram a ver-se mais uma vez, quando ela lhe disse. "Aquela brincadeirazinha pôs-te grávida?", "O que eu sei é que estou grávida", "Tens de abortar, eu não quero deixar um filho na Guiné, vejo como estão os filhos de tropas."

Geralda Cassamá, com o seu filho Erasmo Fonseca, conta que era virgem e que o militar esteve com ela uma única vez

"Tinha medo, ouvi dizer que se morria no aborto." O pai dela ficou furioso quando soube, mas não se foi queixar ao quartel do militar português que lhe tinha engravidado a filha. "Havia medo de falar, era o tempo colonial." E Erasmo nasceu.

Se as mães não tivessem mantido segredo tanto tempo sobre a identidade dos pais, se depois da independência da Guiné ser filho de português não se tivesse tornado um perigo e as mães não tivessem tido de queimar todos os documentos e fotos que os associavam àqueles pais e a Portugal, se algumas mães não tivessem morrido prematuramente, se ao menos elas soubessem ler e escrever e tivessem apontado o nome e morada dos pais... Se...

As identidades dos pais estão, muitas vezes, soterradas debaixo destas camadas de impossibilidades encadeadas umas nas outras e que resultam de um país onde a esperança média de vida se fica pelos 49 anos e leva cedo as memórias dos mais velhos que não chegam a sê-lo (só 5% da população tem mais de 60 anos), a que se soma a turbulência da própria história da Guiné.

Depois da independência, em 1974, a vida tornou-se difícil para todos os que estivessem de alguma forma associados aos ocupantes. Desde logo para os milhares de guineenses que tinham lutado com os portugueses e foram deixados para trás. Sabe-se que muitos ex-militares guineenses foram fuzilados por terem ajudado "o inimigo". Foi duro para as mulheres que tinham tido relações com portugueses, "as mulheres de tuga", mais ainda para as que tinham filhos como prova. E, no fim da linha, foi difícil para os filhos que tinham nascido de portugueses.

No período pós-independência, foram destruídos todos os documentos, fotos, registos relacionados com os pais e que, passada a tempestade, os podiam ajudar a encontrá-los.

No caso de Fátima Cruz, consta que o pai até a tinha registado como filha, mas a mãe teve de destruir esse e outros papéis, temia pela sua vida. Foram-se embora as fotos dos rostos de homens jovens fardados que andavam lá por casa. Rasgados, queimados, havia que esconder quaisquer ligações "aos colonialistas".

Carlos Alberto Silva ainda se lembra de ter seis anos e passar que tempos a olhar para a única foto de um jovem militar que havia em casa, a procurar semelhanças, a pensar "é igual a mim". Depois da independência, "a minha mãe rasgou-a e pôs na fossa". Em adulto, teve a sorte de reencontrar uma cópia dessa foto em casa de um conhecido, copiou-a, ampliou-a e tem-na num álbum de família, como se o pai desconhecido fizesse parte dela.

Na família dos irmãos José Maria e Elva Maria Indequi, além de se destruírem fotos do pai, a mãe tratou de os mandar para longe, com medo que os fuzilassem. Ele e a irmã cresceram apartados da mãe. "Nós fomos escondidos, a minha mãe ficou só com o filho negro."

Todos eles relembram o período da independência como o mais complicado das suas vidas. Óscar ainda fica com os olhos tremeluzentes de lágrimas, quando repete os versos em crioulo que era obrigado a entoar na escola: um hino do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que falava da heróica expulsão dos portugueses - "Grilla na terra, tugazinho na nuven" ("guerrilha na terra, tugazinho nas nuvens", ou seja, lá longe). "Eu chorava, era o único na turma que chorava" - porque estavam a falar do pai que ele não conhecia, mas que ainda assim era o seu pai. Nataniel Silva Évora ouvia o mesmo hino à saída de casa, cantado pelos colegas, às vezes acompanhado de pedradas - "quando rapo o cabelo notam-se as cicatrizes" - ou de sacos de cascas de amendoim que eram atirados para cima dele. A mãe biológica não teve condições financeiras para ficar com ele e a mãe adoptiva que o criou era paciente, limpava-lhe o sangue das pedradas, punha desinfectante e dizia-lhe: "Não digas nada, corre." Na altura, ouviram todos variações da frase: "Já corremos com os vossos pais, o que é que vocês ficaram cá a fazer? Vão para a vossa terra."

Mesmo sem retratos, todos eles imaginaram e continuam a imaginar como serão os pais fisicamente, mas o que têm como matéria-prima para imaginação é muitas vezes só os seus próprios rostos, os seus cabelos, os seus corpos.

Óscar Albuquerque escreveu sete cartas ao pai português. Nunca teve resposta

"Deve ter a minha altura, olhos castanhos, o cabelo preto, como o meu", diz Fátima Cruz. "Os ex-colegas [guineenses] do meu pai disseram-me que sou a cara chapada." "Sabes o que é uma máquina fotocopiadora, Óscar? Tu és tal e qual o teu pai", disse-lhe um ex-colega do pai. E e ele ficou feliz quando ouviu isso. A Fátima Mané, a mãe dizia: "Ele era bonito", e aponta para a sua cara: "Como eu." Fernando Hedgar da Silva lembra-se de se olhar ao espelho e tentar não chorar.

Além de traços físicos, procuram em si características da personalidade dos pais desconhecidos. Coleccionam pequenos detalhes aos quais dão um significado exagerado, "eu sou desportista, ele era desportista", diz José Carlos Martins, com um dos bíceps tatuado com o escorpião que era símbolo da companhia do pai. Quando há algo que consideram uma qualidade, estabelecem ligações: Nataniel é paciente, "deve ser por causa do meu pai".

Isidro Teixeira, jornalista da televisão nacional, descobriu um dia porque é que, assim sem mais, sentiu vontade de entrar numa escola de música e se saiu bem com as oito canções que compôs. Uma delas foi um sucesso do Carnaval de há 15 anos. Ele sempre ouviu dizer que o pai era "cabo corneteiro", mas depois, há uns anos, chegou-lhe às mãos uma foto do pai no tempo da guerra a tocar guitarra portuguesa. "Quando vi essa foto... O talento nasce da pessoa. Então gosto da música por causa do meu pai, ele sopro e cordas, eu canto."

Mas 40 a 50 anos depois da guerra, muitos destes filhos chegam à idade adulta com quase nada ou muito pouco para somar à imaginação.Para a maioria, a busca começa já demasiado tarde. Em adultos, ganham autonomia e saem da casa, e nessa altura já rareiam as pistas para encontrar a outra metade das suas histórias.

Esta busca pelo pai "tuga" depende do que têm como ponto de partida, mas também dos recursos de que cada um dispõe. Os que têm mais estudos são normalmente quem chega mais longe. Ter algum dinheiro e tempo também é importante. E os homens desenvencilham-se mais do que as mulheres.

Maria Djasse, a mais velha de três irmãs, cada uma filha do seu pai português, chegou aos 45 anos com duas palavras, "cabo" e "rancho". Um ex-militar guineense explicou-lhe que "rancho" era como se dizia "comida" entre os militares e pensa que talvez o pai fosse um cabo que trabalhava na cozinha do quartel. Soma a essa informação a subtracção que todos fazem à sua idade para encontrar o tempo em que os pais lá estiveram. Maria tem 45 anos, acha ela porque nunca foi registada e não tem bilhete de identidade (de uma população de 1,6 milhões, só 150 mil o tem), o que significa que terá nascido em 1968. Subtrai-se os nove meses da sua gestação e mais os dois anos da comissão e, além de saber que talvez o pai tenha sido um cabo que trabalhava na cozinha, terá estado na Guiné por volta de 1966-67. É tudo.

Mariama Camará sabe mais, mas apenas que o apelido do pai era Amaral. Viajou duas horas com o filho de um ano e meio ensanduichado entre ela e o marido na motorizada para nos transmitir isso, que o pai dela chama-se Amaral e que gostava de o conhecer, talvez a possamos ajudar. Alguns não estão certos da grafia. Zita Morato não sabe se o apelido do pai é Parque ou Parco, são essas as duas versões de apelidos que tem escritas num papel, e são também as poucas palavras que diz em português e não em crioulo. Os irmãos Indequi têm três versões de nomes, "é uma história muito confusa, escura, nem mesmo com um holofote se consegue iluminar", diz José Maria: o pai dos dois ou se chama Roberto Silva ou Cabo Vicente, ou José Carlos dos Santos.

Quem como José Maria e Elva tem mais dúvidas do que certezas pede que lhes divulguemos a única certeza que têm, os nome das mães; que se os pais forem vivos hão de ler-lhes o nome no jornal, lembrar-se que um dia estiveram com elas. A mãe de Fernando Hedgar Silva é Sabadozinha Mendes, a de Nataniel é Elizabete Pereira Évora, a das três irmãs é Fatuma Sale Djasse, a das gémeas Higina e Teresa é Domingas da Silva.

Mas talvez nem se lembrem já como se chamavam aquelas mulheres africanas com nomes estranhos. Por isso, estes filhos ajudam juntando os nomes pelos quais os pais conheciam as mães: a de Zita Morato era Naná, o pai de Óscar tratava a mãe por Esparguete porque era magrinha

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